UMA LEI REVERSÍVEL
Oliveira
Foi publicado no jornal da «Voz da Verdade». E é a oportunidade que se pretende oferecer neste Blog. Sendo um dos objectivos da COPAAC pugnar pela Verdade, pela justiça e pelos valores do Evangelho e testemunhar com audácia no mundo quase já a perder referências das nossas tradições familiares, humanas e cristãs, propomos a leitura de mais este artigo, agradecendo ao Autor o entendimento autêntico, sensato, honesto que muito bem sabe exprimir.
AGPires
Parece ter chegado ao fim o processo que conduziu à aprovação da lei que legalizou entre nós a eutanásia e o suicídio assistido.
Ao longo de toda a discussão desta proposta, eu, como quase todas as pessoas que a ela se opunham, fomos alertando para o perigo do alargamento progressivo do campo dessa legalização. A experiência de outros países que enveredaram por esse caminho revela-o bem. Não se trata de um fantasma alarmista, mas de uma consequência lógica. As metáforas para descrever este fenómeno abundam: a “rampa deslizante” que não impede a descida contínua e imparável, a janela que se abre e que o vento forte impede de voltar a fechar, o alicerce que se derruba e leva à derrocada completa de um edifício.
Assim, de forma mais ou menos recorrente e mais ou menos rápida. se vai passando da eutanásia em situações de doença terminal a situações de doença incurável ou deficiência; da eutanásia em situações de sofrimento físico a situações de sofrimento psíquico ou espiritual; da eutanásia com pedido atual à eutanásia com pedido antecipado; até chegar à eutanásia de doentes mentais ou sem pedido expresso (em casos de grave deficiência); da eutanásia de adultos à eutanásia de adolescentes, crianças e recém-nascidos. Chega a advogar-se a eutanásia fora de situações de doença (na Holanda discute-se tal proposta há vários anos e o Tribunal Constitucional alemão admite o suicídio assistido também para além de situações de doença).
Convém ainda ter presente que em todos os países que legalizaram a eutanásia e/ou o suicídio assistido se vem assistindo ao invariável incremento da frequência da sua prática. É sobretudo o clima cultural que a legalização gera a explicar tal fenómeno: o que era impensável passa a ser normalizado.
Embora os seus partidários digam que a lei portuguesa agora aprovada é das mais restritivas e oferece garantias que impedirão os abusos, certo é que com ela se dão já alguns dos passos acima indicados. A legalização já não se limita a situações de doença terminal. é inequívoco que a eutanásia e o suicídio assistido podem praticar-se em situações de doença grave incurável e de deficiência. A definição do tipo de sofrimento que pode justificar essa prática é das mais amplas, não exclui o sofrimento psíquico e espiritual, segundo um critério que, em última análise, depende do requerente, tornando-se, desse modo, completamente subjetivo.
As notícias que dão conta do alargamento progressivo dos campos de aplicação da legalização da eutanásia e do suicídio assistido sucedem-se com regularidade. As duas últimas são recentes e dizem respeito à Holanda (país pioneiro nessa legalização) e ao Canadá (país onde tal legalização é mais recente, mas onde tal alargamento tem sido mais rápido).
Na Holanda, onde já é legal a eutanásia de recém-nascidos (em caso de deficiências graves) e de adolescentes maiores de doze anos, propõe-se a legalização da eutanásia de crianças até aos doze anos. No Canadá, onde a legalização da eutanásia começou por se restringir às situações de doença terminal e rapidamente se estendeu às situações de doença incurável e deficiência, prevê-se para breve a legalização da eutanásia de crianças e doentes mentais.
No Canadá, dois casos recentes vieram abrir outro campo de alargamento da prática da eutanásia, particularmente perigoso e preocupante. Duas pessoas vítimas de uma doença cujo tratamento exige condições fora do alcance das suas capacidades económicas pediram a eutanásia com esse mesmo fundamento. Autores influentes, embora reconhecendo que deverá ser dada prioridade, por razões de justiça social, ao acesso dessas pessoas a tais condições de tratamento, não deixam de afirmar que, por uma razão de respeito pelo princípio de autodeterminação, a possibilidade de prática da eutanásia não deverá ser afastada nessas situações (assim o artigo de Kayla Wiebe a Amin Mullin, da Universidade de Toronto, “Choosing death in unjust conditions, hope, autonomy and harm reduction”, publicado na revista Journal of Medical Ethics). O que levará necessariamente à opção pela eutanásia quando os necessários tratamentos de qualquer doença em causa sejam particularmente onerosos, um perigo ainda mais acentuado em países como o nosso, sem os recursos do Canadá.
É bom estar a par de todos estes perigos a que também agora estamos sujeitos depois da legalização da eutanásia e do suicídio assistido.
No entanto, também é bom salientar que não estamos perante algum determinismo histórico, ou algo de inevitável. Todos estes perigos podem ser evitados se a lei agora aprovada vier a ser revertida (mas apenas nesse caso). É verdade que tal nunca aconteceu noutros países que deram esse passo da legalização. Mas não tem de ser necessariamente assim. No que se refere às chamadas “leis fraturantes”, estamos habituados a que os seus partidários não desistam enquanto não as aprovam. Não se compreende porque é que os seus adversários hão de desistir de as reverter depois de elas serem aprovadas.
Numa democracia, leis como esta não podem ser intocáveis ou irreversíveis. Sê-lo-ão apenas normas fundamentais assentes no direito natural, normalmente contidas na parte da Constituição relativa aos direitos fundamentais. E não é esse o caso desta lei, que, pelo contrário, fere o princípio constitucional (que, esse sim, deveria ser intocável e irreversível) da inviolabilidade da vida humana.
Pedro Vaz Patto