O SOM DA LIBERDADE
Oliveira
Ora, bem. Já agora, aproveitemos este artigo do Dr. Pedro Vaz Patto, que nos ajuda a pensar…
A G Pires
Quem, como eu, não tenha muito tempo para ir ao cinema, ou para de outro modo ver filmes, vê-se forçado a escolher bem os filmes que vê, para que não seja desperdiçado esse seu precioso tempo. Já a várias pessoas tinha ouvido recomendar o filme O Som da Liberdade, inspirado em factos reais de combate ao tráfico para exploração sexual de crianças e adolescentes (a acção de Tim Ballard, que resgatou desse tráfico um grande número de crianças). Depois de ver esse filme, só posso dizer que foi uma óptima escolha e que não posso deixar de, também eu, o recomendar.
Também já me tinha inteirado de todas as polémicas associadas a este filme; a tentativa, vinda de uma facção política, de o instrumentalizar para alimentar uma teoria da conspiração sobre a cumplicidade de políticos nesse tráfico e, vindos de uma facção política oposta a essa, o boicote e a oposição como reação à eventualidade desse aproveitamento; a recusa da sua distribuição pelas maiores empresas do ramo e a mobilização popular como reacção a essa recusa que se tem traduzido num êxito de bilheteira.
Mas o conteúdo, a mensagem e a qualidade do filme podem, e devem, ser apreciados sem preconceitos políticos e abstraindo dessas polémicas.
O horror da exploração sexual de crianças não é, para mim, por dever de ofício como juiz, uma novidade. São simplesmente irreproduzíveis, neste e em muitos outros contextos, as descrições de pornografia infantil que constam de processo judicias que já me passaram pelas mãos. Este filme também nos faz supor claramente esse horror, mas de forma decorosa e sensível e sem nunca o explorar morbidamente.
No meio desse horror, o filme retrata a beleza da inocência das crianças vítimas deste crime e a beleza dos laços que as ligam às suas famílias, de paternidade e de fraternidade. Descreve com forte carga emotiva a dor de pais e filhos, a dor da separação entre eles, simbolizada num quarto vazio. Reflete a dignidade dos pobres que são também essas vítimas.
Também com forte carga emotiva, apela a que cada pessoa, cada pai ou mãe, sinta cada uma dessas crianças como se fosse seu filho ou filha. E cada uma delas, como cada filho ou filha, é um bem precioso, único e irrepetível. Por causa de cada uma delas, que poderia ser nosso filho ou filha, vale a pena deixar o conforto de uma vida tranquila e até arriscar a vida, como faz o protagonista da história.
De um modo muito discreto, pode ser colhida uma inspiração cristã neste filme, que reflecte a fé dos seus produtores e actores principais: numa alusão às severas palavras do Evangelho sobre o escândalo dos pequeninos, na referência à intervenção de Deus na conversão de um criminoso num momento de desespero, na frase que sintetiza a motivação do combate a este crime: «os filhos de Deus não estão à venda».
Não posso, porém, omitir uma advertência. Os métodos de acção policial narrados no filme não seriam admissíveis à luz da legislação processual penal portuguesa e de muitos outros países, pelo menos no que diz respeito ao aspecto seguinte. Assistimos a um exemplo nítido de acção do chamado “agente provocador”, isto é., o agente policial que oculta essa sua qualidade no contacto com os agentes do crime (até este ponto será considerado apenas “agente infiltrado”, o que ainda será admissível, em determinadas condições, na nossa e noutras legislações) e que, para além disso, chega a instigar esses agentes à própria prática do crime.
A ilegalidade desse método justifica-se porque a acção policial não deve utilizar métodos desleais. Ainda que movida pelos fins mais louváveis de combate à criminalidades grave, não deve servir-se de quaisquer tipo de meios que a possam de algum modo aproximar da deslealdade própria de uma actuação criminosa.
Penso que esta minha reserva não ensombra a mensagem central deste filme; a importância e urgência do combate a este crime, que, sem exagero, pode ser equiparado à escravatura. Numa altura em que muitos querem sublinhar os danos causados no passado pela escravatura, muitos também ignoram ou esquecem esta escravatura bem atual. No final do filme afirma-se até que o número de vítimas actuais desta forma de escravatura excede o das vítimas da escravatura no passado, quando ela era legal.
E recorda-se o poder que têm os “contadores de histórias” para despertar as consciências, como sucedeu com o célebre livro A Cabana do Pai Tomás e a influência que teve como contributo para a abolição da escravatura nos Estados Unidos. É algo de semelhante que pretende este filme, no que se refere ao combate ao crime de tráfico para exploração sexual de crianças e adolescentes. Oxalá possa ter algum êxito nesse sentido, para além dos êxitos de bilheteira.
Pedro Vaz Patto