Natalidade
Oliveira
Com a devida vénia, transcrevemos, para os leitores do nosso Blog o artigo que segue, do Dr. Pedro Vaz Patto, publicado no jornal digital "Sete Margens".
(A. G. Pires)

Opinião de Pedro Vaz Patto
Dados da Eurostat divulgados recentemente revelam que a queda da natalidade na União Europeia em 2023 foi a mais acentuada desde 1961 (foi de 5,6%), situando-se agora a taxa respetiva em 1,38 nascimentos por mulher, muito abaixo da necessária para assegurar a renovação das gerações (que é de 2,1). O “inverno demográfico” acentua-se cada vez mais.
É inegável que um conjunto de condicionalismos económicos e sociais (entre nós mais recentemente e mais gravemente, a falta de acesso à habitação; mas também os baixos salários ou a dificuldade de conciliação entre o trabalho e a vida familiar) não facilitam a opção de ter filhos. Mas há outra dimensão do problema que não pode ser ignorada e que se liga ao fenómeno que os demógrafos designam como “paradoxo do desenvolvimento”: quanto maior o desenvolvimento, menor a taxa de natalidade. E a queda dessa taxa conduz sistematicamente a níveis inferiores aos necessários para a renovação das gerações, mesmo nos países com mais generosos apoios sociais em geral e também os especificamente dirigidos à natalidade. Há uma dimensão fundamental do “inverno demográfico” que depende da cultura e da mentalidade.
Essa dimensão é analisada em dois livros em língua francesa que li recentemente com grande interesse, um de uma filósofa, de nome Marianne Durano (Naître ou le néant – Porquoi faire des enfants en temps d´effondrement, Desclée de Brouwer, 2024), e outro de uma jornalista e também filósofa, Azilis Le Corre (L´enfant est l´avenir de l´homme, Albin Michel, 2024), ambas jovens mães.

Uma e outra partem da verificação de uma realidade da nossa época inédita na história das civilizações: há quem pretenda negar o próprio princípio da bondade da procriação. Há pessoas e casais que assumem essa filosofia como estilo de vida: o estilo de vida “childfree” (livres de crianças) e dos casais “two incomes no kids” (dois rendimentos sem crianças). Uma das pretensas justificações para a opção da recusa da procriação tem a ver com a sobrevivência do planeta.
A propósito destas supostas razões ecológicas para a grande limitação, ou mesmo recusa, da procriação, comenta a filósofa Marianne Durano que é incrível como a nossa civilização prefere renunciar à sua perenidade através da transmissão da vida a modificar os seus modos de produção e de consumo (são estes que estão na raiz da crise ecológica: os ultra-ricos consomem num dia mais do que qualquer família numerosa e, em média, cem pessoas etíopes consomem tanto como uma pessoa ocidental). Pelo contrário, é a vulnerabilidade das futuras gerações que lança as bases de uma autêntica moral ecológica e humana, a qual eleva a protecção da natureza a norma ética não contra o humano, mas em nome do humano. São os nossos filhos que o exigem. Optar por dar a vida apesar de tudo implica modificar drasticamente a nossa concepção de felicidade, retomando as lições das filosofias antigas que proclamavam a sobriedade feliz antes de esta se tornar uma necessidade ecológica.
Das reflexões de Marianne Durano, são de sublinhar outras ideias.
Contra o que já tem sido defendido (pretendendo justificar a recusa da procriação com base no bem das crianças que viessem a nascer), dar a vida é sempre um bem para quem nasce, nunca um dano (ao contrário do que afirma a jurisprudência iniciada pelo famoso acórdão Perruche, relativo ao nascimento de uma criança com deficiência). O nada não é superior ao ser. A vida é o pressuposto de todos os bens. Não tem sentido pensar que possa alguém preferir não ter nascido porque para isso é preciso que tenha nascido… Antes de qualquer cálculo utilitarista sobre a suposta felicidade de uma pessoa, há que permitir que essa pessoa exista e viva.
Transmitir a vida é considerar que ela tem sentido e vale a pena, para além do gozo individualista do presente. Supõe uma visão que se alarga à comunidade e ao futuro. A vida que protegemos e transmitimos liga-nos como espécie ao destino de todos os outros e é este élan que mantém as sociedades através dos séculos e que justifica os nossos combates e as nossas invenções. Essa renovação potente funda o nosso compromisso social e político, porque só a vinda ao mundo de novos seres humanos pode motivar os seres mortais que somos a trabalhar por um mundo que lhe pode sobreviver. Uma sociedade que não se reproduz é uma contradição nos termos.
O paradigma da responsabilidade moral é, como salienta o filósofo Hans Jonas, o de uma relação assimétrica e desinteressada. A relação assimétrica e desinteressada por excelência é a que existe entre um progenitor e um filho, entre quem dá a vida e quem a recebe.
Acolher os nossos filhos como seres únicos e livres, como um dom que se recebe incondicionalmente e não como frutos de um projeto parental, é recusar a instrumentalização da vida. Gerar é acolher uma novidade radical e imprevisível, enquanto projetar é realizar um plano preciso e previsto de longa data. Esta perspectiva é incompatível com discursos natalistas que pretendem utilizar o corpo das mulheres para assegurar o domínio numérico de uma categoria da população contra outra (não é desse modo que se enaltece o valor da natalidade).
Não controlamos os efeitos da geração de uma vida. Esta surpreende-nos sempre e pode também frustrar expectativas. A geração de uma vida implica uma forma de confiança e de fé. Qualquer compromisso ou vínculo de amor, de amizade ou de luta pressupõe uma fé no futuro. Gerar um filho é estender esta fé a um ser ainda mais frágil do que eu. A perspectiva de gerar seres para a Eternidade benevolente de Deus é um consolo. Mas esse Deus submeteu Abraão à prova do sacrifício do seu filho e ofereceu-nos o Seu na cruz. A fé em Jesus Cristo leva-nos a considerar as suas palavras: «quem quiser salvar a sua vida há de perdê-la. Mas quem perder a sua vida por minha causa e da Boa Nova há de salvá-la» (Mateus 8, 35-36). Dar a vida implica, pois, estar pronto a perdê-la para assim a salvar.

Numa linha muito consonante com esta, exprime-se, de uma outra forma mais singela, a jornalista e também filósofa Azilis Le Corre.
Salienta ela como a queda da natalidade se liga ao tipo de sociedade que o sociólogo Zigmunt Baumann designa como “líquida”. Nesta não se valoriza, como noutras eras, o sacrifício individual em nome do grupo ou de uma causa.
Outro aspecto que esta autora liga à queda da natalidade é a desvalorização da maternidade. Um certo discurso feminista de rejeição da maternidade não conduz à libertação ou capacitação da mulher, mas à sua alienação. A maternidade não é um simples destino biológico, nem uma construção social, mas a experiência que revela a especificidade da natureza feminina no que tem de mais valioso nos planos físico e psíquico. Essa experiência traduz-se na vivência da alteridade no seu próprio corpo. Essa mais intensa vivência da alteridade é a chave da superação do individualismo que caracteriza as sociedades “líquidas”.
Superar a crise da natalidade depende da vivência do amor agápico, do amor de doação total entre um homem e uma mulher que conduz ao casamento e à procriação. Gerar uma vida torna visível um fruto dessa relação de doação total e representa também em si mesmo uma forma de doação total, que permite a passagem do não ser ao ser, a alguém de radicalmente novo que se introduz no mundo: o amor absolutamente doado e absolutamente recebido.
Todas estas ideias e considerações revelam como são profundas as raízes que poderão conduzir ao fim do “inverno demográfico”.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica.
