“MIL NOVECENTOS E OITENTA E QUATRO” NA CHINA
Oliveira
Artigo de Pedro Vaz Patto, com a devida vénia, transcrito do Jornal digital «SETE MARGENS»
No último encontro da plataforma das Comissões Justiça e Paz europeias, entre outras situações relativas a violações de direitos humanos em várias partes do mundo, foi dado particular destaque à situação da China em geral e de Hong-Kong em particular.
O Pe. Gianni Criveller, missionário do instituto italiano P.I.M.E., especialista em questão relativas à China e residente por longos anos em Hong-Kong, sublinhou o seu profundo desencanto com a situação que se vive atualmente nessa região. Disse já não reconhecer essa cidade, onde até há pouco se respirava liberdade, apesar das limitações do seu regime democrático: hoje é uma cidade que não é democrática, nem livre. Relatou, dizendo que o fazia de forma emocionada por conhecer bem os protagonistas, a recente condenação judicial (por aplicação da “lei de segurança interna” hoje em vigor) de vários activistas em prol da democracia, por factos que num qualquer Estado de Direito não seriam crime, mas simples “opinião”. Todos esses activistas professam a fé cristã (a maioria deles são católicos) e nela encontram a motivação do seu combate pela liberdade. Um deles, Martin Lee, condenado em pena suspensa (provavelmente, em atenção à sua idade avançada) tem sido considerado “pai” do movimento pró-democrático em Hong-Kong e tem sido regularmente consultado pelos bispos católicos.
O jornalista inglês Benedict Rodgers, da organização de defesa dos direitos humanos Hong-KongWatch, que tem acompanhado a situação da China, e também de Mianmar (onde viveu vários anos e se converteu ao catolicismo, para o que contribui o testemunho do cardeal Charles Bo), realçou também o impacto que tem tido em Hong-Kong a “lei de segurança interna” nos âmbitos da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa (ele próprio foi o primeiro de vários jornalistas estrangeiros expulsos do território) , do ensino (cada vez mais instrumento de imposição ideológica) e da liberdade religiosa. Esses ataques estão ainda longe do que se verifica nas outras partes da China, mas parece ser nesse sentido que também caminha esse território, cujo estatuto especial vem sendo violado na prática, contra os compromissos internacionalmente assumidos. Sobre a situação dos direitos humanos na China continental, aludiu à tragédia dos uigures, que a Câmara dos Comuns do Reino Unido já qualificou como “genocídio”, numa declaração aprovada por unanimidade.
Também sobre as violações dos direitos humanos na China, a eurodeputada eslovaca Miriam Lexman (do Partido Popular Europeu) afirmou que aquilo a que hoje assistimos representa o preço da ilusão em que caíram políticos e académicos confiando que a abertura económica, a intensificação das relações comerciais e o crescimento económico conduziriam a uma progressiva abertura política, com reformas em sentido democrático e de maior respeito por tais direitos. Não foi isso que se verificou. O crescimento económico tem provocado um reforço do poder político chinês nos planos interno e externo, e o pendor desse poder vai cada vez mais num sentido autoritário e até totalitário. Tal contrasta com o que sucedeu na União Soviética e na Europa de Leste, onde a ausência de laços de interdependência económica com o Ocidente facilitou a queda dos regimes comunistas – salientou esta eurodeputada de um dos países que se libertou desses regimes. Pugnou pela coerência entre as políticas comercial e de defesa dos direitos humanos da União Europeia. Nesse sentido, criticou o acordo geral de investimentos entre a União Europeia e a China, que ignora até as exigências de respeito pelas normas de direito laboral decorrentes das convenções da Organização Internacional do Trabalho. Defendeu também a responsabilização de empresas vendedoras de produtos com origem na China quando não cumpram deveres de vigilância relativa ao respeito pelos direitos humanos em todas as fases (e não apenas na última) da cadeia de valor desses produtos.
A estas informações e opiniões associei o que se diz sobre a China no Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo recentemente publicado pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre. Aí se afirma: «Nenhum regime na história teve mais sucesso em tornar realidade o romance distópico de George Orwell Mil Novecentos e Oitenta e Quatro do que o da República Popular da China. De facto, o aparelho de repressão construído pelo Partido Comunista Chinês nos últimos anos é de tal forma aperfeiçoado, difundido e tecnologicamente sofisticado que faz com que o “Big Brother” pareça amador». Essa repressão atinge a liberdade religiosa. Esse aparelho inclui a difusão cada vez maior de câmaras de vigilância com reconhecimento facial (também em igrejas e templos), plataformas de recolha sistemática de dados de smartphones sem conhecimento dos visados e um sistema de “crédito social” por pontos em que baixas pontuações (que podem derivar da participação em actos de culto religioso não autorizado ou da falta de cooperação com a polícia na detecção desses actos) podem impedir a inscrição de crianças e jovens em escolas, ou a utilização de transportes públicos. Expoente máximo desse aparelho de repressão é a prisão de centenas de milhar de muçulmanos uigures em “campos de reeducação”.
Diante deste cenário, choca a passividade e indiferença de governos ocidentais que nos seus relacionamentos económicos com a China ignoram violações de direitos humanos tão graves e acentuadas como estas, que dificilmente encontram paralelo noutras latitudes. Esses relacionamentos intensificaram-se, empresas chinesas ocupam hoje posições de grande relevo nas economias de muitos países e a China tornou-se uma grande potência. Estes relacionamentos não são de rejeitar em si mesmos, além do mais porque têm contribuído para a redução da pobreza no mundo. Mas não contribuíram, como ilusoriamente muitos pensaram (também aqui seguindo pressupostos exagerados sobre as virtudes do mercado) para qualquer abertura política (há até quem considere que só nos tempos do maoismo se assistiu a tão graves violações dos direitos humanos como as que agora se verificam). Importa, na verdade, não desligar a política comercial das políticas de defesa dos direitos humanos, condicionando os relacionamentos económicos ao respeito desses direitos (incluindo os dos trabalhadores). Isso já tem sucedido com países económica e politicamente mais fracos. Também aqui, não é justo e coerente ser «forte com os fracos e fraco com os fortes».
Pedro Vaz Patto