COMPAIXÃO A CHAGA ABERTA DO AMOR FERIDO
Oliveira
Com a devida vénia, partilhamos mais uma publicação do nosso prezado amigo jornalista António Justo.
(A. G. Pires)
A Guerra expressa a carência de empatia e de misericórdia
"Do que sofre?" é a pergunta que todos esperam que Perseval, faça a Anfortas (1)! Perseval entra no castelo onde Anfortas vive e sofre de uma lesão que não cicatrizava, de uma chaga aberta causada por amor ferido (Anfortas pode entender-se como símbolo de todos nós)!
Perseval movido de compaixão sentia-se compelido a perguntar sobre o seu sofrimento. Mas Perseval retrai-se e não faz a pergunta porque se a fizesse Anfortas poderia sentir-se inferiorizado perante Perseval! Para poder fazer tal pergunta isso implicaria primeiro o encontro consigo mesmo: aquela base que torna possível o encontrar-nos com o outro e no outro, um sentir-se em casa, mas no respeito pela casa do outro. Nesse encontro embarcamos juntos experimentando em comum a ferida do amor, o amor ferido de que sofre cada um de nós. Nesta base a pergunta torna-se legítima porque não se deixa reduzir a um acto de cortesia nem sequer de sobranceria e ao tornar-se compaixão traz consigo um efeito de cura e um sentimento de alívio na partilha do sofrimento; nela não me sinto só porque sofro com o outro.
Sofrer de amor é a realidade humana que se expressa de maneira arquetípica e redentora na Semana da Paixão! Se sinto a vida dentro e fora de mim, constato que ela é uma chaga aberta resumida no caminho do Calvário. Em Jesus sofre a humanidade e Jesus com ela.
A semana Santa é o tempo e o espaço de toda a humanidade resumidos num encontro de relação humano-divina! Jesus, como o madeiro às costas torna-se na resposta acabada à pergunta “Do que sofre?”. “Sofro de amor” é uma resposta de compaixão existencial que não se reduz a uma explicação mental: pergunta e resposta pressupõem uma comunhão de vida num peregrinar de existência comum. A pergunta-resposta ao expressar-se na compaixão tem um efeito de cura. Ela pressupõe uma relação interior, doutro modo poderia situar-se entre o sentir pena/compaixão e o ser lamentável de caracter meramente mental.
O existencialista Friedrich Nietzsche (2) ri-se da compaixão, considerando-a como egoísta e como sinal de fraqueza. O estoicismo considera a misericórdia/compaixão algo feminino, porque só valoriza a visão da razão; ao fazê-lo não nota que se refugia na masculinidade de que sofre a nossa matriz mental e social quando omite que compaixão não é uma ideia, mas uma atitude que se expressa em pensamentos palavras e obras (na caridade efectiva).
Como resposta a visão cristã procura não se perder nos abismos do coração (sentimento) nem nas lonjuras da razão. Compaixão é amor participado na reciprocidade de algo comum, na vivência comum do amor ferido; não é meramente racional, é incorporada na pessoa integral (corpo e alma) feita de eu e nós, de um eu enquadrado nas suas circunstâncias; não se pode reduzir a um mero discurso ou conceito intelectual porque compaixão não observa só de fora ela sente e vê também de dentro. Compaixão é certamente inata tal faz parte da vida tal como agradecimento não se podendo reduzidas a meros sentimentos negativos ou positivos.
A supressão da compaixão e da empatia faz parte da matriz masculina. Ter compaixão não é negativo como queria o existencialismo niilista, pois ao envolver reconhecimento, apreciação, elogio, consideração, respeito. Mais do que ter pena, estamos na pena, um estado de compaixão, um laço que nos une e não se deixa reduzir apenas à inteligência emotiva, dado incluir, levar connosco, o sofrimento do outro e incorporá-lo na nossa vida…
… Compaixão implica sentimento e também a lógica numa atitude de justiça que leva à acção. A nossa sociedade procura evitar tudo o que é dor e nesse sentido tenta eliminar também do vocabulário as palavras de conotação religiosa que envolvem o sentimento de piedade, misericórdia ou compaixão. A psicologia demasiadamente controlada pela cabeça procura fugir à dor…
… O crente é solidário não só com os viventes, mas também com os mortos. Doutro modo reduzir-se-ia a vida a categoria de tempo do relógio e como tal limitando-a à mera recordação mental de momentos…
… no JC trazemos connosco a força e a fraqueza que não nos faz temer porque as reconhecemos em nós e nos outros: esta “fraqueza” que faz parte do carácter feminino de Deus ainda é estranha a todas as instituições.
Urge restituir a dignidade humana aos pobres do mundo e viver a caridade/solidariedade, urge integrar na matriz social excessivamente masculina, também a feminilidade /aquela característica onde o activismose dissolve na paz!). A identificação com os que sofrem (compaixão) não é devida à má consciência nem se trata tão-pouco de, com ela, enrouparmos o nosso ego; a caridade, compaixão, misericórdia é uma ressonância que tudo une independentemente do baixo ou do alto em expressões humanas…
Os acontecimentos e a vivência da Semana Santa são a pergunta e a resposta ao sofrimento do amor ferido!
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
Texto completo e notas em Pegadas do Tempo, https://antonio-justo.eu/?p=7336