Já há quem reclame a demissão de D. Manuel Clemente (“no mínimo”!) por não ter comunicado às autoridades civis a denúncia de um crime de abuso sexual de criança ocorrido cerca de vinte anos antes e seguindo a vontade da vítima. Há também quem fale, a propósito, em conivência com o crime e diga que a Igreja não pode estar à margem do Estado de Direito.

Ora, são precisamente os princípios do Estado de Direito que exigem um pouco mais de equilíbrio e bom senso na análise desta questão e outras semelhantes (algo de semelhante sucedeu ao cardeal Philippe Barbarin, arcebispo de Lyon, absolvido depois de um longo calvário judicial e mediático), A gravidade dos crimes de abuso sexual de crianças e adolescentes, a que hoje felizmente a opinião pública está mais sensível, não pode resvalar para um zelo acusatório e punitivo exacerbado (que se nota em relação a membros da Igreja Católica, mas não noutros âmbitos) mais próprio de fenómenos que fazem recordar uma “caça às bruxas” do que de um Estado de Direito.

Convirá relembrar algumas das normas civis e canónicas que regem esta matéria.

Não existe em Portugal uma norma que torne obrigatória para qualquer cidadão a comunicação da prática de crimes às autoridades policiais e judiciárias. Essa obrigação existe apenas, quanto a crimes públicos (que não dependem de queixa do ofendido ou de quem o represente) para agentes policiais e funcionários públicos, estes quanto a crimes de que tenham tomado conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas (ver artigo 242.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). É compreensível esta norma, que evita fazer de toda e qualquer cidadão, forçadamente, um polícia de amigos, colega e e vizinhos (como sucedia com a Inquisição).  Essa obrigação existe, porém, precisamente no que se refere a crimes de abuso sexual de crianças, noutros países, como a França (e daí a acusação contra o cardeal Barbarin, onde também estava em causa um crime já prescrito),.Mas, independentemente dessa obrigação genérica, pode considerar-se que existe (e também ente nós) uma obrigação de denúncia desse ou de outros crimes (sob pena de eventual responsabilização criminal por omissão, possível em relação a determinadas pessoas e situações) quando se verifica o perigo de prática de futuros crimes pela pessoa denunciada e a intervenção das autoridades policias e judiciárias for um meio possível e necessário de evitar essa prática.

No que ao ordenamento jurídico canónico (da Igreja Católica, pois), diz respeito, vigora hoje, e desde 2020, a norma da Santa Sé constante do Vademecum do Dicastério para a Doutrina da Fé, para que também remetem as diretrizes da Conferência Episcopal portuguesa de 13 de novembro de 2020. Essa norma estabelece que devem ser comunicadas às autoridades civis as denúncias de crimes de abuso sexual de crianças e adolescentes e pessoas vulneráveis, mesmo que a tal a lei civil não obrigue (como se verifica, nos termos indicados, com a legislação portuguesa), quando essa comunicação for necessária para proteger a vítima e para evitar a continuação da atividade criminosa de que venham a ser vítimas outras pessoas (literalmente, quando se considere «indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos»).

Ora, no caso relatado que envolve o Patriarca de Lisboa, a vítima, já adulta, não pretendia apresentar queixa criminal, nem dar publicidade ao crime e essa sua vontade foi tida em consideração. Compreende-se que essa vontade tenha sido considerada. Na verdade, muitas vítimas sentem, ou temem, o processo judicial como algo que reforça o seu sofrimento e o seu trauma (a chamada “vitimação secundária”). Não deveria ser assim (muitas vezes poderá e deverá. ser precisamente o contrário), e há dispositivos legais para o evitar (também no que diz respeito à publicidade), mas isso pode suceder e há que respeitar essa vontade da vítima. A centralidade da proteção da vítima (não qualquer propósito de favorecimento do denunciado) impõe-no.

Não me parece censurável, por outro lado, considerar que, diante da denúncia de um crime de abuso sexual de criança já prescrito, porque ocorrido há cerca de vinte anos, e na ausência de quaisquer outros indícios da prática desse crime durante esses vinte anos, se considere que a intervenção das autoridades policiais e judiciárias não é necessária para evitar a prática de futuros crimes e, portanto, que se omita a comunicação dessa denúncia a tais autoridades.

Desde logo, porque com base numa denúncia de um crime já prescrito nenhuma autoridade policial ou judiciária pode de algum modo, limitar a atuação da pessoa denunciada. É, desde logo, o princípio da presunção de inocência (próprio de um Estado de Direito) que o exige. Nem sequer o pode fazer em relação a pessoas já condenadas pela prática desse tipo de crimes depois de extinta a pena (de prisão ou outra). Nem me consta que haja alguma prática sistemática de vigilância policial dessas pessoas. Só agora oiço falar desta questão a propósito de eventuais crimes já prescritos praticados por sacerdotes, quendo ela deveria ocorrer em relação à prática destes crimes por quaisquer outras pessoas.

Tem-se dito, a este respeito, que o crime de abuso sexual de crianças raramente é praticado de forma isolada e ocasional e, portanto, que o referido perigo de continuação da atividade criminosa existe sempre, mesmo que só haja notícia de um ato isolado ocorrido há décadas. Que a reiteração da prática desses crimes é muito frequente, é algo que pode concluir-se não apenas da experiência de psicólogos e psiquiatras, mas também da experiência de juízes e procuradores.

Mas assumir essa regra em termos absolutos leva a consequências de todo incompatíveis com o sistema legal que nos rege (algumas contestadas por partidos populistas). Desde logo porque este sistema assenta no princípio de que a pena tem uma finalidade ressocializadora (ou, mais ambiciosamente, reeducativa), o que não é compatível com uma ideia de incorrigibilidade do delinquente.

Mas não só. Considerar como regra absoluta que a crime de abuso sexual de crianças nunca pode ser praticado isoladamente e que há sempre, independentemente da sua gravidade e das condições em que é praticado, perigo de continuação da atividade criminosa, levaria a optar sempre pela pena de prisão (sendo praticamente impossível proibir qualquer tipo de contactos com crianças, mesmo que se proíba o contacto regular), quando para o sistema que nos rege a pena de prisão é uma ultima ratio, um último recurso, não o único (e, por isso mesmo, quanto e este tipo de crimes, embora muitas vezes se opte por tal pena, também de outras vezes se opta por penas alternativas). Quanto à medida da pena de prisão, esta deveria ser ilimitada (e daí que partidos populistas reclamem a prisão perpétua nestes casos), o que contraria qualquer finalidade ressocializadora da pena. Ou, não sendo possível a condenação em pena de prisão perpétua, deveria seguir-se a sistemática condenação no limite máximo da pena, o que também não se coaduna com o regime que nos rege, que manda atender a um conjunto diversificado de circunstâncias na determinação da medida da pena. Quanto à execução da pena de prisão, seriam vedadas nestes crimes medidas de flexibilização dessa pena, como saídas precárias e liberdade condicional (tal não decorre da lei, nem da prática judiciária, que não as exclui neste tipo de crimes, embora não seja ignorada a sua especificidade e o mais frequente perigo de continuação da atividade criminosa, que impõe especiais cuidados). Também não estamos perante crimes imprescritíveis, vigorando quanto a eles as regras gerias de prescrição (que fixam prazos mais ou menos alargados consoante a gravidade respetiva), com uma regra especial relativa à idade da vítima (estes crimes nunca prescrevem antes de esta atingir vinte e três anos).

Assinalo todas estas normas e práticas para concluir que não pode ser encarada em termos absolutos a ideia de que existe sempre perigo de continuação da atividade criminosa quando se verifica a prática de um crime de abusos sexual de crianças, mesmo que ocorrido há mais de vinte anos e sem que haja quaisquer outros indícios de reiteração dessa prática durante esses vinte anos.

E não considero, por isso, censurável, nem juridicamente (quer à luz do direito estadual e dos princípios do Estado de Direito, quer à luz do direito canónico), nem eticamente (na perspetiva do primordial objetivo da proteção das vítimas), que D. Manuel Clemente, seguindo a vontade do denunciante, não tenha comunicado às autoridades civis a denúncia de um crime de abuso sexual de criança ocorrido cerca de vinte anos antes (já prescrito, portanto) e sem que houvesse indícios de prática de outros crimes pelo denunciado durante esses vinte anos.

Pedro Vaz Patto