Com a devida vénia, transcrevemos para os leitores do nosso Blog o artigo que segue, do Dr. Pedro Vaz Patto publicado, ontem, em 7 MARGENS.
(A. G. Pires)
Uma esmagadora maioria de deputados e senadores franceses aprovou uma revisão constitucional que consagra o direito ao aborto (eufemisticamente designado, como vem sendo habitual, como “interrupção voluntária da gravidez”) como direito fundamental: um direito situado a par de todos aqueles que constam das históricas Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, e Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Uma aprovação transversal, da extrema esquerda à extrema direita, passando pelo centro, saudada com entusiasmo por Emmanuel Macron e Marine Le Pen e festejada com a iluminação da torre Eiffel. Entretanto, o presidente francês propõe também (já desde há algum tempo) incluir esse pretenso direito na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. Entre nós, surgiu logo a proposta de alguns políticos de seguir este exemplo francês.
Não foi exactamente assim que a questão da legalização do aborto foi inicialmente proposta em muitos países.
Muitos dos proponentes dessa legalização (como Simone Weil, em França) reconheciam o aborto como um drama, não como um bem. Vem-me à memória o que muitos diziam em Portugal: “somos todos contra o aborto, só não queremos a prisão das mulheres”; “somos contra o aborto, só queremos eliminar o aborto clandestino e o problema de saúde pública que representa”. Ou também o tão proclamado propósito: “o aborto deve ser legal, seguro e raro”. Reconhecia-se, então, que o aborto era um mal que não devia ser promovido, tendencialmente deveria ser evitado, embora fosse, de algum modo, inevitável. Falava-se habitualmente em “despenalização” do aborto, não em direito ao aborto. Discutia-se a adequação da política criminal para combater o flagelo do aborto clandestino, sem falar em “direito ao aborto”. Quando o Tribunal Constitucional português se pronunciou sobre a conformidade dessa legalização, ou despenalização, com o princípio constitucional da inviolabilidade da vida humana, fê-lo no pressuposto de que havia que equilibrar, segundo o critério designado como de “concordância prática”, a protecção da vida do embrião e do feto com a protecção da liberdade da mulher grávida. Mas nunca deixou de considerar que essa vida, como vida humana, não era merecedora de protecção. Por isso, a lei deveria estabelecer sempre limites, ou relativos às causas da prática do aborto, ou relativos ao tempo de gestação do nascituro.
É certo que já então se alertava, do outro lado da contenda, para o perigo de assim derrubar o alicerce que representa o princípio da inviolabilidade da vida humana (superior ao da liberdade pessoal), como o início de uma “rampa deslizante” que não é possível deter. Não estava em causa apenas uma questão de política criminal; não estava em causa apenas a descriminalização ou despenalização do aborto, mas a sua legalização: por isso, os serviços de saúde, públicos e privados, passavam a colaborar activamente na sua prática. A vida humana não era menos digna de protecção na sua fase inicial, por que todos nós passamos. A protecção da vida não é abstracta, mas concreta, e, por isso, ao contrário do que sucede com outros direitos ou liberdades, não pode deixar de ser absoluta e ilimitada (ou é protegida, ou não é, porque ninguém pode estar semi-vivo). E também se dizia que à mulher grávida em dificuldade não pode ser dada apenas, pelo Estado e pela sociedade, a escolha entre aborto clandestino e aborto legal.
Agora, com este pretenso reconhecimento do aborto como direito fundamental (colocado a par de todos os outros direitos fundamentais elencados em declarações internacionais e Constituições nacionais) cai por terra a noção do aborto como um mal. O objecto de um direito, e ainda mais de um direito fundamental, não pode deixar de ser um bem. Não tem sentido não promover, evitar ou limitar o acesso a esse bem. Reconhecer o direito ao aborto como direito fundamental abre a porta às leis mais extremistas (como as que já estão a ser propostas em alguns Estados norte-americanos) que afastam as (muitas ou poucas) limitações ao exercício desse direito, incluindo as relativas ao tempo de gestação do feto (já não apenas dez ou doze semanas). Torna muito mais frágil o exercício da objecção de consciência de profissionais de saúde, encarada com obstáculo ao exercício de um direito fundamental (os governantes franceses disseram que ela não está em causa, mas teme-se, justificadamente, que venha a estar). Faz prevalecer em absoluto a liberdade da mulher sobre a vida do nascituro, para além de qualquer ponderação entre esses dois valores. Afasta definitivamente a preocupação de que o aborto seja raro: aos deputados franceses parece não impressionar o número de abortos que, no seu país, não pára de aumentar (os últimos conhecidos apontam para 234 mil por ano, sendo os nascimentos cerca de 728 mil – ver Avvenire, 5/3/2024). Tal como afasta qualquer política que promova alternativas ao aborto junto de mulheres grávidas em dificuldade.
A questão que se coloca, então, com a maior pertinência é a de saber qual o fundamento que possa justificar a consagração deste pretenso direito fundamental; o que pode justificar que Constituições nacionais ou a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, que reconhecem o direito à vida como o primeiro dos direitos (porque todos eles pressupõem a vida do seu titular) pode consagrar o direito a suprimir uma vida, ainda para mais a vida mais frágil, indefesa e inocente (“o mais pobre dos pobres”, dizia Santa Teresa de Calcutá).
Se atenderemos às declarações do principal proponente desta medida, o presidente Emmanuel Macron, o que fundamenta esse direito será o direito da mulher a dispor do seu corpo. “O meu corpo, a minha escolha” – voltou a ouvir-se este slogan nas manifestações de apoio à deliberação das câmaras parlamentares francesas. Seria de esperar já definitivamente superado este argumento, tão contrário aos mais evidentes dados da ciência e da experiência comum.
Encarar o embrião e o feto como parte do corpo da mulher será como recuar às concepções do direito romano (segundo as quais, seriam parte “das vísceras da mulher”). Também na antiga Grécia se considerava que só com o nascimento se saberia se o feto era humano ou monstro (é claro que não havia, então, ecografias…). Os dados da biologia são inequívocos: a partir da concepção estamos perante um novo ser da espécie humana (obviamente não de qualquer outra espécie animal), com um património genético próprio (único e irrepetível, distinto da mãe e do pai), dotado de capacidade de evoluir, conservando sempre a mesma identidade (é sempre o mesmo até à idade adulta e à morte), através de um processo autónomo e coordenado, sem qualquer quebra de continuidade, de acordo com uma finalidade presente desde o início (um processo sumamente organizado e inteligente, pois, muito longe de um simples amontoado de células). No fundo, o embrião é aquilo que cada um de nós já foi e nenhum de nós teria atingido a fase da vida que hoje atravessa se não tivesse passado por essa fase inicial da vida, ou se tivesse sido impedido nessa fase tal processo de evolução natural.
Conceber o direito ao aborto como direito fundamental é desvirtuar a noção dos direitos humanos universais. Estes não resultam de uma decisão arbitrária do legislador (que tanto poderia atribui-los aos seus titulares como retirá-los); resultam do direito natural e o direito positivo reconhece-os como algo lhe é prévio e superior. A histórica declaração de direitos humanos que consta da Declaração da Independência dos Estados Unidos afirma os direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade como direitos conferidos aos seres humanos pelo seu Criador (não pelo Estado). Estamos muito longe desta noção de direitos humanos quando neles se pretende incluir o direito ao aborto.
Mas, mais grave do que isso, conceber o direito ao aborto como direito fundamental decorrente do direito da mulher a dispor do seu corpo, ignorando qualquer direito do nascituro, conduz, na expressão do filósofo italiano Vittorio Possenti (in Avvenire, 13/3/2024) à “abolição do outro”: a existência e o estatuto do outro depende de uma arbitrária decisão individual, com as graves repercussões que esta concepção provoca em toda a interacção social.
São justificados os alertas e receios de perigos que hoje correm os direitos humanos que pensávamos bem consolidados. Com todo o respeito pela boa fé de quem assim não pensa, considero que afirmar o direito ao aborto como direito fundamental é o mais grave desses perigos.
Pedro Vaz Patto
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica.