Cristianismo e democracia
Oliveira
Com a devida vénia, transcrevemos para os leitores do nosso Blog o artigo que segue, do Dr. Pedro Vaz Patto publicado, ontem, em 7 MARGENS.
(A. G. Pires)
Imagem retirada do documentário ‘Jacques Maritain, a Busca da Verdade”’, produzido pelo Instituto Jacques Maritain em parceria com Grupo Somar para Vencer e Rede Plene Mariae Produções.
Em tempo de comemoração dos cinquenta anos da revolução de 25 de abril, penso dever concluir que o maior legado desta é o da consolidação do Estado de Direito Democrático. Uma consolidação que esteve ameaçada nos primeiros tempos, mas que se foi fortalecendo progressivamente. Esta efeméride torna particularmente oportuna a reflexão sobre os fundamentos éticos da democracia.
A propósito dos valores em que deve basear-se a democracia, é particularmente luminoso um pequeno livro do filósofo francês Jacques Maritain, escrito pouco antes do fim da Segunda Guerra Mundial, sobre Cristianismo e Democracia (há uma tradução castelhana das Ediciones Palabra, de 2001). Ele aí afirma que a democracia, ainda que por intermédio de quem disso não tinha plena consciência, «surgiu na história humana como manifestação temporal da inspiração evangélica». Assim foi porque o cristianismo anunciou aos povos a unidade do género humano, a igualdade da natureza de todos as pessoas, filhas do mesmo Deus e reunidas pelo mesmo Cristo, a dignidade de cada alma criada à imagem e semelhança de Deus, a dignidade do trabalho e dos pobres, a inviolabilidade das consciências, a autoridade como serviço, a lei do amor fraterno que se estende a todos, para além dos diferentes grupos sociais, classes, raças, nações e até aos inimigos.
É verdade que esta ligação entre a mensagem evangélica e a democracia só a partir de meados do século passado foi evidenciada pelo magistério da Igreja Católica. Como em relação a outros aspectos, o aprofundamento desse magistério guia-se sempre por uma cada vez maior fidelidade ao Evangelho, mais do que pela conformidade à mentalidade em cada tempo dominante. Como dizia São João XXIII, não se trata de mudar o Evangelho, mas de o compreender melhor.
Consciente desta realidade e do facto de muitas vezes não terem sido os cristãos, ou os católicos, a lutar pelos ideais democráticos, Jacques Maritain afirma nesse livro que o fermento evangélico trabalha na História de forma oculta e desconhecida. A inspiração evangélica da democracia não deriva do cristianismo como «tesouro de verdades divinas mantidas e propagadas pela Igreja», mas como «energia histórica que trabalha no mundo». Esse trabalho oculto da inspiração evangélica levou, a por esse autor denominada «consciência profana», a compreender a dignidade da pessoa humana (que transcende o Estado «pelo mistério insondável da sua liberdade espiritual e da sua vocação aos bens absolutos»), tal como a dignidade do povo e a dignidade da humanidade que a nós é comum. Foi também o trabalho oculto da inspiração evangélica que levou a «consciência profana» a compreender que a autoridade depende do consentimento do povo e se dirige a uma comunidade de pessoas livres e que é a justiça que alimenta a ordem, sendo a injustiça a pior desordem. Jacques Maritain lamentava que os cristãos nem sempre tenham sido os arautos desta «consciência profana» que conduziu à democracia, porque se o tivessem sido, ter-se-iam evitado erros e desvios. Esperava que deixasse de ser assim no futuro.
É da mesma época, a dos últimos tempos da Segunda Guerra Mundial (talvez não seja por acaso), o primeiro documento do magistério da Igreja Católica de clara adesão aos princípios do regime democrático. Trata-se da mensagem de Pio XII do Natal de 1944 (acessível em vww.vatican.va). Merece uma leitura atenta. Na linguagem própria da época, acentua bem os fundamentos éticos da democracia, denunciando os possíveis desvios desses fundamentos. É particularmente oportuna hoje, quando tanto se fala dos perigos do populismo (que muitos associam antes à demagogia como forma degenerada de democracia, de acordo com a milenária classificação de Aristóteles), a distinção que nessa mensagem se faz entre povo e massa (sendo a verdadeira democracia o governo do povo, não o pretenso governo da massa). Afirma Pio XII nessa mensagem (a tradução é minha):
«Povo e multidão amorfa ou, como costuma dizer-se, “massa” são dois conceitos diferentes. O povo vive e move-se por si mesmo; a massa é em si mesma inerte, e não pode ser movida senão de fora. O povo vive na plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais – no seu lugar e à sua maneira – é uma pessoa consciente das suas responsabilidades e das suas convicções. A massa, pelo contrário, espera um impulso vindo de fora, joguete fácil nas mãos de quem quer que explore os seus instintos e as suas impressões, pronta a seguir, alternadamente, hoje esta, amanhã outra bandeira. Da exuberância da vida de um verdadeiro povo, a vida propaga-se, abundante, rica, no Estado e em todos os seus órgãos, espalhando neles, com um vigor incessantemente renovado, a consciência da sua responsabilidade, o verdadeiro sentido do bem comum. Da força elementar da massa, habilmente manipulada e usada, pode também o Estado servir-se; nas mãos ambiciosas de um só ou de vários que as tendências egoístas tenham artificialmente agrupado, o próprio Estado pode, com o apoio da massa, reduzida a não mais do que uma simples máquina, impor o seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro povo; o interesse comum é desse modo gravemente e por longo tempo atingido e a ferida é com muita frequência dificilmente curável.»
João Paulo II no seu primeiro discurso na ONU, em 1979: servir o bem comum como propósito da ação política. Foto: Direitos reservados.
A propósito dos fundamentos éticos da democracia, impõe-se salientar outro aspecto. A democracia não se reduz a um conjunto de regras formais que assegurem uma qualquer decisão tomada pela maioria (se assim fosse, não teria, na verdade, sólidos fundamentos éticos). Não se baseia no relativismo. Afirmou São João Paulo II na encíclica Centesimus Annus (n. 46): «Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma recta concepção da pessoa humana. (…) Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo céptico constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idóneos às formas políticas democráticas, e que todos os que estão convencidos que conhecem a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a acção política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra.»
Fundamento ético da democracia é, antes de mais, o da dignidade da pessoa humana, a que se reporta a recente declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé (aprovada pelo Papa Francisco) Dignitas Infinita. É essa dignidade, comum a qualquer pessoa, que está na base da democracia, porque é nela que assenta o princípio de que a vontade (o voto) de qualquer pessoa, rica ou pobre, culta ou ignorante, vale tanto como o de qualquer outra. Essa dignidade, também perceptível apenas pela razão humana, decorre claramente da visão bíblica do ser humano criado «à imagem e semelhança de Deus» e da visão cristã de um Deus que assume a natureza humana, proclama o amor universal, especialmente para com os mais pobres e vulneráveis, e dá a sua vida pela salvação de cada pessoa, chamada à comunhão com Ele. Como acentua essa declaração, a dignidade humana é “ontológica”, ou seja, é inerente a qualquer ser humano só pelo facto de o ser, independentemente de quaisquer circunstâncias; não depende da idade, das capacidades físicas ou intelectuais ou até das qualidades morais; não admite graus (neste sentido “ontológico”, não no sentido moral, não há pessoas mais dignas do que outras); não se adquire só a partir de determinada fase do desenvolvimento, não se perde com a doença ou qualquer deficiência, inata ou superveniente; e também não se perde com a prática de pecados e de crimes (porque a regeneração moral da pessoa nunca pode ser afastada). Partindo deste princípio, esse documento enumera, numa perspectiva coerente e global, vários atentados à dignidade humana: o aborto, a pobreza, muitas das guerras, o tráfico de pessoas, a exploração laboral, os abusos sexuais, a maternidade de substituição, a eutanásia, a pena de morte, a hostilidade para com imigrantes, etc.
Não pode algum desses atentados à dignidade humana ser justificado por algum voto parlamentar ou plebiscitário, por muito absoluta que seja a maioria em causa. Quando tal se verifica, é o mais sólido fundamento ético da democracia que é abalado (como sucedeu quando o partido nazi ganhou eleições na Alemanha). Não posso deixar de referir, a este respeito, os atentados graves contra esse fundamento que representam (como negação do direito à vida dos nascituros, seres humanos na fase inicial e de maior vulnerabilidade) as recentes votações do Parlamento francês e do Parlamento Europeu, que levaram à inclusão do pretenso direito ao aborto como direito fundamental na Constituição francesa e à tentativa da inclusão desse direito na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica.