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CONFEDERAÇÃO PORTUGUESA DE ANTIGOS/AS ALUNOS/AS DO ENSINO CATÓLICO

Espaço aberto a comunicações de antigos alunos do ensino católico em Portugal.

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CONFEDERAÇÃO PORTUGUESA DE ANTIGOS/AS ALUNOS/AS DO ENSINO CATÓLICO

24
Abr24

Cristianismo e democracia


Oliveira

Com a devida vénia, transcrevemos para os leitores do nosso Blog o artigo que segue, do Dr. Pedro Vaz Patto publicado, ontem, em 7 MARGENS.

(A. G. Pires)

JacquesMaritain_doc01.jpg

Imagem retirada do documentário ‘Jacques Maritain, a Busca da Verdade”’, produzido pelo Instituto Jacques Maritain em parceria com Grupo Somar para Vencer e Rede Plene Mariae Produções.

 

Em tempo de comemoração dos cinquenta anos da revolução de 25 de abril, penso dever concluir que o maior legado desta é o da consolidação do Estado de Direito Democrático. Uma consolidação que esteve ameaçada nos primeiros tempos, mas que se foi fortalecendo progressivamente. Esta efeméride torna particularmente oportuna a reflexão sobre os fundamentos éticos da democracia.

A propósito dos valores em que deve basear-se a democracia, é particularmente luminoso um pequeno livro do filósofo francês Jacques Maritain, escrito pouco antes do fim da Segunda Guerra Mundial, sobre Cristianismo e Democracia (há uma tradução castelhana das Ediciones Palabra, de 2001). Ele aí afirma que a democracia, ainda que por intermédio de quem disso não tinha plena consciência, «surgiu na história humana como manifestação temporal da inspiração evangélica». Assim foi porque o cristianismo anunciou aos povos a unidade do género humano, a igualdade da natureza de todos as pessoas, filhas do mesmo Deus e  reunidas pelo mesmo Cristo, a dignidade de cada alma criada à imagem e semelhança de Deus, a dignidade do trabalho e dos pobres, a inviolabilidade das consciências, a autoridade como serviço, a lei do amor fraterno que se estende a todos, para além dos diferentes grupos sociais, classes, raças, nações e até aos inimigos.

É verdade que esta ligação entre a mensagem evangélica e a democracia só a partir de meados do século passado foi evidenciada pelo magistério da Igreja Católica. Como em relação a outros aspectos, o aprofundamento desse magistério guia-se sempre por uma cada vez maior fidelidade ao Evangelho, mais do que pela conformidade à mentalidade em cada tempo dominante. Como dizia São João XXIII, não se trata de mudar o Evangelho, mas de o compreender melhor.

Consciente desta realidade e do facto de muitas vezes não terem sido os cristãos, ou os católicos, a lutar pelos ideais democráticos, Jacques Maritain afirma nesse livro que o fermento evangélico trabalha na História de forma oculta e desconhecida. A inspiração evangélica da democracia não deriva do cristianismo como «tesouro de verdades divinas mantidas e propagadas pela Igreja», mas como «energia histórica que trabalha no mundo». Esse trabalho oculto da inspiração evangélica levou, a por esse autor denominada «consciência profana», a compreender a dignidade da pessoa humana (que transcende o Estado «pelo mistério insondável da sua liberdade espiritual e da sua vocação aos bens absolutos»), tal como a dignidade do povo e a dignidade da humanidade que a nós é comum. Foi também o trabalho oculto da inspiração evangélica que levou a «consciência profana» a compreender que a autoridade depende do consentimento do povo e se dirige a uma comunidade de pessoas livres e que é a justiça que alimenta a ordem, sendo a injustiça a pior desordem.  Jacques Maritain lamentava que os cristãos nem sempre tenham sido os arautos desta «consciência profana» que conduziu à democracia, porque se o tivessem sido, ter-se-iam evitado erros e desvios. Esperava que deixasse de ser assim no futuro.

É da mesma época, a dos últimos tempos da Segunda Guerra Mundial (talvez não seja por acaso), o primeiro documento do magistério da Igreja Católica de clara adesão aos princípios do regime democrático. Trata-se da mensagem de Pio XII do Natal de 1944 (acessível em vww.vatican.va). Merece uma leitura atenta. Na linguagem própria da época, acentua bem os fundamentos éticos da democracia, denunciando os possíveis desvios desses fundamentos. É particularmente oportuna hoje, quando tanto se fala dos perigos do populismo (que muitos associam antes à demagogia como forma degenerada de democracia, de acordo com a milenária classificação de Aristóteles), a distinção que nessa mensagem se faz entre povo massa (sendo a verdadeira democracia o governo do povo, não o pretenso governo da massa). Afirma Pio XII nessa mensagem (a tradução é minha):

«Povo e multidão amorfa ou, como costuma dizer-se, “massa” são dois conceitos diferentes. O povo vive e move-se por si mesmo; a massa é em si mesma inerte, e não pode ser movida senão de fora. O povo vive na plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais – no seu lugar e à sua maneira – é uma pessoa consciente das suas responsabilidades e das suas convicções. A massa, pelo contrário, espera um impulso vindo de fora, joguete fácil nas mãos de quem quer que explore os seus instintos e as suas impressões, pronta a seguir, alternadamente, hoje esta, amanhã outra bandeira. Da exuberância da vida de um verdadeiro povo, a vida propaga-se, abundante, rica, no Estado e em todos os seus órgãos, espalhando neles, com um vigor incessantemente renovado, a consciência da sua responsabilidade, o verdadeiro sentido do bem comum. Da força elementar da massa, habilmente manipulada e usada, pode também o Estado servir-se; nas mãos ambiciosas de um só ou de vários que as tendências egoístas tenham artificialmente agrupado, o próprio Estado pode, com o apoio da massa, reduzida a não mais do que uma simples máquina, impor o seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro povo; o interesse comum é desse modo gravemente e por longo tempo atingido e a ferida é com muita frequência dificilmente curável.»

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João Paulo II no seu primeiro discurso na ONU, em 1979: servir o bem comum como propósito da ação política. Foto: Direitos reservados.

A propósito dos fundamentos éticos da democracia, impõe-se salientar outro aspecto. A democracia não se reduz a um conjunto de regras formais que assegurem uma qualquer decisão tomada pela maioria (se assim fosse, não teria, na verdade, sólidos fundamentos éticos). Não se baseia no relativismo. Afirmou São João Paulo II na encíclica Centesimus Annus (n. 46): «Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma recta concepção da pessoa humana. (…) Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo céptico constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idóneos às formas políticas democráticas, e que todos os que estão convencidos que conhecem a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a acção política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra

Fundamento ético da democracia é, antes de mais, o da dignidade da pessoa humana, a que se reporta a recente declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé (aprovada pelo Papa Francisco) Dignitas Infinita. É essa dignidade, comum a qualquer pessoa, que está na base da democracia, porque é nela que assenta o princípio de que a vontade (o voto) de qualquer pessoa, rica ou pobre, culta ou ignorante, vale tanto como o de qualquer outra. Essa dignidade, também perceptível apenas pela razão humana, decorre claramente da visão bíblica do ser humano criado «à imagem e semelhança de Deus» e da visão cristã de um Deus que assume a natureza humana, proclama o amor universal, especialmente para com os mais pobres e vulneráveis, e dá a sua vida pela salvação de cada pessoa, chamada à comunhão com Ele. Como acentua essa declaração, a dignidade humana é “ontológica”, ou seja, é inerente a qualquer ser humano só pelo facto de o ser, independentemente de quaisquer circunstâncias; não depende da idade, das capacidades físicas ou intelectuais ou até das qualidades morais; não admite graus (neste sentido “ontológico”, não no sentido moral, não há pessoas mais dignas do que outras); não se adquire só a partir de determinada fase do desenvolvimento, não se perde com a doença ou qualquer deficiência, inata ou superveniente; e também não se perde com a prática de pecados e de crimes (porque a regeneração moral da pessoa nunca pode ser afastada).  Partindo deste princípio, esse documento enumera, numa perspectiva coerente e global, vários atentados à dignidade humana: o aborto, a pobreza, muitas das guerras, o tráfico de pessoas, a exploração laboral, os abusos sexuais, a maternidade de substituição, a eutanásia, a pena de morte, a hostilidade para com imigrantes, etc.

Não pode algum desses atentados à dignidade humana ser justificado por algum voto parlamentar ou plebiscitário, por muito absoluta que seja a maioria em causa. Quando tal se verifica, é o mais sólido fundamento ético da democracia que é abalado (como sucedeu quando o partido nazi ganhou eleições na Alemanha). Não posso deixar de referir, a este respeito, os atentados graves contra esse fundamento que representam (como negação do direito à vida dos nascituros, seres humanos na fase inicial e de maior vulnerabilidade) as recentes votações do Parlamento francês e do Parlamento Europeu, que levaram à inclusão do pretenso direito ao aborto como direito fundamental na Constituição francesa e à tentativa da inclusão desse direito na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.

Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica. 

17
Abr24

Para além da direita e da esquerda

[sobre a Declaração “Dignitas Infinita”]


Oliveira

Com a devida vénia, transcrevemos para os leitores do nosso Blog o artigo que segue, do Dr. Pedro Vaz Patto publicado anteontem na página da Rádio Renascença.

(A. G. Pires)

Vários são os aspectos da recente declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé (aprovada pelo Papa Francisco), Dignitas Infinita, sobre a dignidade humana, que merecem destaque.
Essa dignidade, também perceptível apenas pela razão humana, decorre claramente da visão bíblica do ser humano criado «à imagem e semelhança de Deus» e da visão cristã de um Deus que assume a natureza humana, proclama o amor universal, especialmente para com os mais pobres e vulneráveis, e dá a sua vida pela salvação de cada pessoa, chamada à comunhão com Ele. Como acentua essa declaração, a dignidade humana é “ontológica”, ou seja, é inerente a qualquer ser humano só pelo facto de o ser, independentemente de quaisquer circunstâncias; não depende da idade, das capacidades físicas ou intelectuais ou até das qualidades morais; não admite graus (neste sentido “ontológico”, não no sentido moral, não há pessoas mais dignas do que outras); não se adquire só a partir de determinada fase do desenvolvimento, não se perde com a doença ou qualquer deficiência, inata ou superveniente; e também não se perde com a prática de pecados e de crimes (porque a regeneração moral da pessoa nunca pode ser afastada). A dignidade humana não é compatível com alguma forma de redução da pessoa a instrumento ou objecto, e já não fim em si mesmo.
Partindo deste princípio, esse documento enumera, numa perspectiva coerente e global, vários atentados à dignidade humana: o aborto, a pobreza, muitas das guerras, o tráfico de pessoas, a exploração laboral, os abusos sexuais, a maternidade de substituição, a eutanásia, a pena de morte, a hostilidade para com migrantes, etc.
Dessa noção da dignidade humana derivam importantes consequências. Porque a dignidade humana não depende da fase de desenvolvimento da pessoa e não admite graus, contra ela atenta gravemente o aborto. Porque a dignidade humana não se perde com a doença ou a deficiência, contra ela atenta gravemente a eutanásia. Porque a dignidade humana não se perde com a prática de crimes, contra ela atenta gravemente a pena de morte. Porque a dignidade humana não é compatível com alguma forma de instrumentalização da pessoa, contra ela atentam gravemente o tráfico de pessoas, o trabalho em condições degradantes, a prostituição e a maternidade de substituição.
Um dos aspectos desta declaração que mais tem sido salientado é o de que ela apresenta a visão da Doutrina Social da Igreja como um conjunto global, completo e coerente de princípios e suas concretizações. A mencionada noção de dignidade humana leva a que ela deva ser defendida, de forma global e coerente, em todas as fases da vida e em todas as circunstâncias. Esta não é, certamente, uma novidade desta declaração; ela apenas recapitula o que decorre em especial dos ensinamentos dos últimos Papas (São João Paulo II, Bento XVI e Francisco) e da coerência de todos esses ensinamentos.
Sublinharam este aspecto, entre outros, o jornalista italiano Andrea Tornielli, um dos responsáveis da comunicação do Vaticano, e o bispo norte-americano Robert Barron, talvez o mais mediático dos bispos, com muitos seguidores no seu país e no mundo inteiro. Afirmou o primeiro que esta declaração «vem superar a dicotomia que existe entre quem se centra exclusivamente na defesa da vida nascente ou moribunda, esquecendo outros atentados, e vice-versa, quem se concentra somente na defesa dos pobres, esquecendo que a vida deve ser defendida desde a concepção até à sua conclusão natural» (in www.vaticannews.va, 8/4/2024). Afirmou o segundo que «a doutrina social católica transcende a divisão esquerda/direita da política ocidental; veja-se como enfatiza temas importantes para a esquerda – migrações, pobreza, oposição à guerra, violência contra a mulher – e uma série de temas importantes para a direita – aborto, eutanásia, ideologia de género» (in www.foxnews.com, 9/4/2024).
Na verdade, há que salientar esta visão completa da Doutrina Social da Igreja, sem a reduzir àquilo a que nos Estados Unidos se designa como 'single issues' (questões isoladas), mas sem esquecer nenhuma dessas questões, sobretudo as mais importantes. Há que defender a vida humana em todas as suas fases, desde a concepção, na infância, na juventude, na idade adulta, na velhice, e até à morte natural. Há que combater todos os atentados contra a dignidade humana, quer quando esse combate corresponde ao “ar do tempo” e à cultura dominante, e assim nos juntamos a um coro de muitas vozes, quer quando esse combate vai “contra a corrente” dessa cultura e somos vozes que «clamam no deserto» (como se tem visto recentemente entre nós a propósito de questões que se pretendem definitivamente canceladas).
Nalgumas questões seremos apontados como “conservadores”, noutras como “progressistas”. Esta visão completa afasta os riscos de parcialidade e de polarização que as divisões entre esquerda e direita acarretam, dentro e fora da Igreja, e que parecem acentuar-se cada vez mais.
Trata-se de uma questão de coerência, mas também de maior eficácia. A defesa da vida e da família depende da formação das consciências, mas em grande medida também de políticas de justiça social ambiciosas. Isolar as questões não é coerente e não é eficaz.
É natural que dentro da Igreja haja pessoas e grupos mais sensíveis a uma ou outra das várias causas de defesa da dignidade humana, mas sem nunca esquecer as outras causas e sem nunca quebrar o diálogo fraterno com outras pessoas e grupos mais sensíveis a essas outras causas.
Penso que este é um dos principais aspectos que a declaração Dignitas Infinita nos vem recordar e que merece atenção.

Dr. Pedro Vaz Patto

Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica.

04
Abr24

Que direito fundamental é este?


Oliveira

Com a devida vénia, transcrevemos para os leitores do nosso Blog o artigo que segue, do Dr. Pedro Vaz Patto publicado, ontem, em 7 MARGENS.

(A. G. Pires)

Uma esmagadora maioria de deputados e senadores franceses aprovou uma revisão constitucional que consagra o direito ao aborto (eufemisticamente designado, como vem sendo habitual, como “interrupção voluntária da gravidez”) como direito fundamental: um direito situado a par de todos aqueles que constam das históricas Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, e Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Uma aprovação transversal, da extrema esquerda à extrema direita, passando pelo centro, saudada com entusiasmo por Emmanuel Macron e Marine Le Pen e festejada com a iluminação da torre Eiffel. Entretanto, o presidente francês propõe também (já desde há algum tempo) incluir esse pretenso direito na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. Entre nós, surgiu logo a proposta de alguns políticos de seguir este exemplo francês.

Não foi exactamente assim que a questão da legalização do aborto foi inicialmente proposta em muitos países.

Muitos dos proponentes dessa legalização (como Simone Weil, em França) reconheciam o aborto como um drama, não como um bem. Vem-me à memória o que muitos diziam em Portugal: “somos todos contra o aborto, só não queremos a prisão das mulheres”; “somos contra o aborto, só queremos eliminar o aborto clandestino e o problema de saúde pública que representa”. Ou também o tão proclamado propósito: “o aborto deve ser legal, seguro e raro”. Reconhecia-se, então, que o aborto era um mal que não devia ser promovido, tendencialmente deveria ser evitado, embora fosse, de algum modo, inevitável. Falava-se habitualmente em “despenalização” do aborto, não em direito ao aborto. Discutia-se a adequação da política criminal para combater o flagelo do aborto clandestino, sem falar em “direito ao aborto”. Quando o Tribunal Constitucional português se pronunciou sobre a conformidade dessa legalização, ou despenalização, com o princípio constitucional da inviolabilidade da vida humana, fê-lo no pressuposto de que havia que equilibrar, segundo o critério designado como de “concordância prática”, a protecção da vida do embrião e do feto com a protecção da liberdade da mulher grávida. Mas nunca deixou de considerar que essa vida, como vida humana, não era merecedora de protecção. Por isso, a lei deveria estabelecer sempre limites, ou relativos às causas da prática do aborto, ou relativos ao tempo de gestação do nascituro.

É certo que já então se alertava, do outro lado da contenda, para o perigo de assim derrubar o alicerce que representa o princípio da inviolabilidade da vida humana (superior ao da liberdade pessoal), como o início de uma “rampa deslizante” que não é possível deter. Não estava em causa apenas uma questão de política criminal; não estava em causa apenas a descriminalização ou despenalização do aborto, mas a sua legalização: por isso, os serviços de saúde, públicos e privados, passavam a colaborar activamente na sua prática. A vida humana não era menos digna de protecção na sua fase inicial, por que todos nós passamos.  A protecção da vida não é abstracta, mas concreta, e, por isso, ao contrário do que sucede com outros direitos ou liberdades, não pode deixar de ser absoluta e ilimitada (ou é protegida, ou não é, porque ninguém pode estar semi-vivo). E também se dizia que à mulher grávida em dificuldade não pode ser dada apenas, pelo Estado e pela sociedade, a escolha entre aborto clandestino e aborto legal.

Agora, com este pretenso reconhecimento do aborto como direito fundamental (colocado a par de todos os outros direitos fundamentais elencados em declarações internacionais e Constituições nacionais) cai por terra a noção do aborto como um mal. O objecto de um direito, e ainda mais de um direito fundamental, não pode deixar de ser um bem. Não tem sentido não promover, evitar ou limitar o acesso a esse bem. Reconhecer o direito ao aborto como direito fundamental abre a porta às leis mais extremistas (como as que já estão a ser propostas em alguns Estados norte-americanos) que afastam as (muitas ou poucas) limitações ao exercício desse direito, incluindo as relativas ao tempo de gestação do feto (já não apenas dez ou doze semanas). Torna muito mais frágil o exercício da objecção de consciência de profissionais de saúde, encarada com obstáculo ao exercício de um direito fundamental (os governantes franceses disseram que ela não está em causa, mas teme-se, justificadamente, que venha a estar). Faz prevalecer em absoluto a liberdade da mulher sobre a vida do nascituro, para além de qualquer ponderação entre esses dois valores. Afasta definitivamente a preocupação de que o aborto seja raro: aos deputados franceses parece não impressionar o número de abortos que, no seu país, não pára de aumentar (os últimos conhecidos apontam para 234 mil por ano, sendo os nascimentos cerca de 728 mil – ver Avvenire, 5/3/2024). Tal como afasta qualquer política que promova alternativas ao aborto junto de mulheres grávidas em dificuldade.

A questão que se coloca, então, com a maior pertinência é a de saber qual o fundamento que possa justificar a consagração deste pretenso direito fundamental; o que pode justificar que Constituições nacionais ou a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, que reconhecem o direito à vida como o primeiro dos direitos (porque todos eles pressupõem a vida do seu titular) pode consagrar o direito a suprimir uma vida, ainda para mais a vida mais frágil, indefesa e inocente (“o mais pobre dos pobres”, dizia Santa Teresa de Calcutá).

Se atenderemos às declarações do principal proponente desta medida, o presidente Emmanuel Macron, o que fundamenta esse direito será o direito da mulher a dispor do seu corpo. “O meu corpo, a minha escolha” – voltou a ouvir-se este slogan nas manifestações de apoio à deliberação das câmaras parlamentares francesas. Seria de esperar já definitivamente superado este argumento, tão contrário aos mais evidentes dados da ciência e da experiência comum.

Encarar o embrião e o feto como parte do corpo da mulher será como recuar às concepções do direito romano (segundo as quais, seriam parte “das vísceras da mulher”). Também na antiga Grécia se considerava que só com o nascimento se saberia se o feto era humano ou monstro (é claro que não havia, então, ecografias…). Os dados da biologia são inequívocos: a partir da concepção estamos perante um novo ser da espécie humana (obviamente não de qualquer outra espécie animal), com um património genético próprio (único e irrepetível, distinto da mãe e do pai), dotado de capacidade de evoluir, conservando sempre a mesma identidade (é sempre o mesmo até à idade adulta e à morte), através de um processo autónomo e coordenado, sem qualquer quebra de continuidade, de acordo com uma finalidade presente desde o início (um processo sumamente organizado e inteligente, pois, muito longe de um simples amontoado de células). No fundo, o embrião é aquilo que cada um de nós já foi e nenhum de nós teria atingido a fase da vida que hoje atravessa se não tivesse passado por essa fase inicial da vida, ou se tivesse sido impedido nessa fase tal processo de evolução natural.

Conceber o direito ao aborto como direito fundamental é desvirtuar a noção dos direitos humanos universais. Estes não resultam de uma decisão arbitrária do legislador (que tanto poderia atribui-los aos seus titulares como retirá-los); resultam do direito natural e o direito positivo reconhece-os como algo lhe é prévio e superior. A histórica declaração de direitos humanos que consta da Declaração da Independência dos Estados Unidos afirma os direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade como direitos conferidos aos seres humanos pelo seu Criador (não pelo Estado). Estamos muito longe desta noção de direitos humanos quando neles se pretende incluir o direito ao aborto.

Mas, mais grave do que isso, conceber o direito ao aborto como direito fundamental decorrente do direito da mulher a dispor do seu corpo, ignorando qualquer direito do nascituro, conduz, na expressão do filósofo italiano Vittorio Possenti (in Avvenire, 13/3/2024) à “abolição do outro”: a existência e o estatuto do outro depende de uma arbitrária decisão individual, com as graves repercussões que esta concepção provoca em toda a interacção social.

São justificados os alertas e receios de perigos que hoje correm os direitos humanos que pensávamos bem consolidados. Com todo o respeito pela boa fé de quem assim não pensa, considero que afirmar o direito ao aborto como direito fundamental é o mais grave desses perigos.

Pedro Vaz Patto

Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica. 

04
Abr24

ESTE SÁBADO (6-ABRIL): CAMINHADA PELA VIDA EM 12 CIDADES - MAIS 5 BISPOS APOIARAM!

CURSO EUROPA + 3 LIVROS IMPORTANTES


Oliveira

Partilho informação importante enviada pelo Dr. António Pinheiro Torres sobre a Caminhada pela Vida e outros assuntos de relevo.

(A G Pires)

Caros amigos

É já este Sábado, 6 de Abril (daqui a menos de 48 horas!) que em 12 cidades do país terá lugar a Caminhada pela Vida! Aos três iniciais (ÉvoraLisboa e Porto) juntaram-se agora outros cinco Bispos a apelar à participação nas respectivas Dioceses: AveiroBragaCoimbraGuarda e Viseu. Reiterando que a Caminhada é integrada por pessoas de diversos credos ou sem qualquer um, de diversas confissões cristãs e diferentes convicções políticas, todos são bem-vindos!, o facto de oito Bispos portugueses terem apelado à participação na Caminhada é sinal não apenas da sua paternidade, mas também da importância desta jornada seja para manifestar a oposição popular às leis contra a Vida e a Família, seja para afirmar uma cultura da Vida indispensável ao desenvolvimento do país e de todos. Conclusão: não faltem a esta jornada e tragam a família e os amigos (normalmente as concentrações são às 14h30 e pelas 16h30 a Caminhada está concluída)!

Aproveito a boleia deste email para vos dar conta também do curso de formação “Os três pilares da Europa” promovido pelo Instituto Imperador Carlos I da Áustria (cartaz em anexo, começa hoje e vai até Junho) e da apresentação dos livros “Identidade e Família” coordenado pelo Movimento de Acção Ética e que será apresentado [no dia 8 de Abril] por Pedro Passos Coelho (cartaz em anexo) e “O Príncipe da Democracia” [uma biografia de Francisco Lucas Pires] de Nuno Poças e “Introdução ao Conservadorismo” de Miguel Morgado), estes dois últimos no IDL-Instituto Amaro da Costa, e, respectivamente, nos dias 9 e 18 de Abril, às 21h00.

Na alegria antecipada de nos encontrarmos todos este Sábado na Caminhada pela Vida (no meu caso, em Beja), um abraço do

António Pinheiro Torres

Formação Os três pilares da Europa 7 sessões a

Apresentação livro Identidade e Família por Ped

 

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