Partilho, com a devida vénia um artigo do Dr. Pedro Vaz Patto, publicado no jornal digital «7 MARGENS» que provavelmente muitos ainda não leram…
A COPAEC congratula-se e agradece testemunhos que edificam e ajudam a saber ser e estar.
AGPires
A corrente de pensamento que vem sendo designada como transumanismo pretende a superação de todos os limites que pode representar a natureza humana, aumentando as capacidades da espécie transformando-a em algo de distinto e superior (a ponto de, numa vertente mais radical, se transformar numa espécie distinta: o pós-humanismo). Começa por negar a excepcionalidade da espécie humana no confronto com outras espécies animais (como fazem as correntes ditas antiespecistas) e daí parte para superar as suas limitações, incluindo a sua natural vulnerabilidade, imperfeição, doença, envelhecimento e até a mortalidade. Fá-lo advogando o recurso à engenharia genética, à tecnologia e à inteligência artificial. Pretende superar a distinção entre natural e artificial (o cyborg). Não encontra limites nas naturais diferenças entre homem e mulher (daí alguma ligação à ideologia do género). Reivindica poderes criativos normalmente atribuídos a Deus; daí que também pretenda superar a distinção entre humano e divino (essa é a pretensão do influente pensador israelita Yuval Noah Harari, autor de um muito difundido livro que tem por título, precisamente, Homo Deus).
Sobre o desafio que representa o transumanismo para a fé cristã e o humanismo clássico, que em muitos aspectos contradiz radicalmente, já muito se tem escrito. Saliento, a este respeito, estes livros: Roberto Esteban Duque, Nostalgia de Futuro - Transhumanismo y desafios a la naturaleza humana, Ediciones Encuentro, Madrid, 2022; Alberto Cortina, Transhumanismo – La ideologia que desafia la fe cristiana, Palabra, Madrid, 2022; e Olivier Rey, Engaño y Daño del Transhumanismo, Homo Legens, Madrid, 2019 (tradução espanhola do original francês)
Ao reflectir sobre as pretensões desta corrente, em grande medida puramente ilusórias e próprias da ficção (eliminar a doença, a dor e a morte?), vem-nos à mente, de imediato, o relato dos primeiros capítulos do Génesis, o pecado das origens que se traduz nas pretensões humanas de ser «como deuses» e de «comer da árvore do bem e do mal», como se fossemos deuses. Pretensões com nefastas consequências que se têm revelado ao longo da história e que são hoje um perigo se a humanidade se deixar cair em novas tentações deste tipo.
Uma primeira contradição da pretensão transumanista de melhorar ou aumentar a espécie humana, realçada por Ricardo Esteban Duque, é esta: se se ignora a natureza humana (isto é, que o ser humano contenha uma finalidade intrínseca que o antecede e não pode destruir arbitrariamente), como avaliar algum seu pretenso melhoramento? O que significa uma melhor realização humana? Que critério seguir?
Na verdade, do que se trata é de impor um determinado critério de avaliação, um critério subjectivo e muito criticável: o de que a pessoas vale em função das suas capacidades físicas e intelectuais. Um reducionismo materialista vem em evidência. Mas a pessoa não é mais feliz ou realizada por ter essas suas capacidades aumentadas. E tal visão contraria a igual dignidade das pessoas humanas, aquisição civilizacional da maior relevância, com raiz na noção judaico-cristã da pessoa humana criada «à imagem e semelhança de Deus». Noção que também se espelha na célebre frase de Santo Ireneu de Lião: «A glória de Deus é o homem que vive». Dessa noção resulta que cada pessoa, por mais vulnerável, dependente ou física ou mentalmente limitada que seja, tem um valor infinito.
Não se trata, então, de (como pretende o transumanismo) superar os limites da natureza humana (pretensão, de resto, necessariamente ilusória), mas de viver uma vida autenticamente humana. Alguns dos limites com que se confrontam os seres humanos podem, e devem, ser superados. Mas não todos, obviamente. Podemos até dizer que esses limites insuperáveis são providenciais, são desejáveis: ajudam a pessoa a crescer, a amadurecer e a ser humilde; pessoas limitadas são interdependentes e essa interdependência suscita o amor ao próximo e a solidariedade (como vimos na recente pandemia). Na expressão de Alberto Cortina (op. cit., pg. 54), os limites «fazem-nos ser o que somos e permitem que cheguemos à plenitude do que estamos chamados a ser e fazer como pessoas».
Mais do que tentar pensar ilusoriamente em eliminar completamente a dor e o sofrimento (o que também pretendem os partidários da eutanásia ao apresentar a morte provocada como resposta à dor e ao sofrimento), há que descobrir o seu sentido, o que significa também descobrir o sentido da vida e o valor de cada vida. É nessa direcção que aponta também o pensamento e a obra de Viktor Frankl.
A pretensão transumanista de superar os limites da natureza humana, incluindo a sua mortalidade, reflecte um anseio de todos as pessoas e de todas as épocas e culturas, esse sim próprio da natureza humana, um anseio de perfeição e de infinito que a experiência terrena não satisfaz e que tem suscitado várias modalidades de religião. O transumanismo responde a esse anseio com a proposta do prolongamento da vida biológica e terrena.
Não é essa a resposta da mensagem cristã. Esta não propõe o prolongamento da vida biológica e terrena (o que até poderia tornar-se entediante), mas a vida eterna que se situa num plano infinitamente superior e que só ela sacia em profundidade as aspirações humanas à perfeição e ao infinito. Na expressão de Alberto Cortina (op. cit., pg. 80), trata-se da «comunhão existencial com Aquele que é a Verdade e o Amor e, portanto, é eterno, é o próprio Deus» e também uma «comunhão com todos que participam do mesmo Amor».
A pretensão transumanista de um ser humano que ambiciona exercer poderes divinos (o Homo Deus) também contrasta radicalmente com a imagem de Deus que nos é dada pela Revelação cristã. Essa pretensão é a de imitar um deus poderoso, controlador da natureza e senhor de uma moral arbitrária («comer da árvore do bem e do mal»), que possa decidir sobre a vida e a morte (como se faz com o aborto e a eutanásia). A Revelação cristã mostra-nos um Deus que respeita a liberdade da criatura humana e também um Deus que se faz Homem, que assume os limites da natureza humana, que, por amor, nasce numa gruta e morre numa cruz.
Um dos perigos desta pretensão (“prometeica”) de fazer as vezes de Deus, a Ele se substituindo, traduz-se na defesa do chamado eugenismo positivo ou liberal. Fala-se em eugenismo positivo porque se trata de melhorar o património genético das gerações futuras (não de eliminar deficientes, como sucedeu noutras épocas da história, mas também sucede hoje em larga escala com o aborto eugénico). Fala-se em eugenismo liberal porque assente na vontade dos progenitores (e não numa imposição estatal, como também sucedeu noutras épocas da história). Pretende-se que, através da engenharia genética, os pais possam decidir a respeito de características dos filhos, supostamente favoráveis, como a inteligência (mais do que evitar a transmissão de doenças). Com uma aparência de beneficência, estamos perante um domínio sobre outros seres humanos, reduzidos a objecto de uma manipulação, sujeitos sem possibilidade de defesa à imposição de critérios de melhoramento que poderiam não partilhar. Esta deriva (também ela decorrente da pretensão de «ser como deuses» e da rejeição dos limites da natureza humana) tem suscitado a firme rejeição de pensadores de várias tendências, como Hans Jonas, Jürgen Habermas e Michael Sandel.
Também esta é uma afronta àquela “ecologia humana” a que se refere Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate (n. 51) ao afirmar: «O livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a vertente da vida, da sexualidade, do matrimónio, da família, das relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento humano integral». A natureza, também no que se refere à transmissão da vida humana, reflecte uma ordem e harmonia que é fruto da sabedoria e do amor do Criador e, nessa medida, ela deve ser respeitada e não manipulada ou destruída.
Um outro perigo das propostas transumanistas é o de criar uma grave e chocante desigualdade, entre quem possa ter acesso a técnicas de melhoramento (que integraria quase uma outra espécie aumentada) e quem não tenha esse acesso. Salienta Francis Fukuyama que desse modo, com essa distinção entre seres mais ou menos capacitados ou perfeitos, se atenta contra a noção de uma única natureza humana, uma única comunidade de seres iguais em dignidade.
Um verdadeiro desafio, este. Um desafio que nos faz reflectir sobre as capacidades e limites da técnica e sobre o verdadeiro sentido da vida. São anseios e aspirações de sempre em confronto com inéditas possibilidades. A resposta existe desde há dois mil anos. Há apenas que a apresentar e viver em toda a sua autenticidade.
Pedro Vaz Patto