Ora, aqui vai um texto que vinha a calhar neste tempo em que alguns já se sentem a caminhar para o «envelhecimento»…
...e se lembram as tradições dos festejos natalícios onde o centro era Jesus no Presépio…. E hoje nem presépio nem Jesus… a árvore e o «pai-natal» ocupam o lugar entre as feéricas iluminações e as músicas a ocultarem a estrela da gruta de Belém e o «Gloria in excelsis Deo» cantado pelo coro dos Anjos…
Mas vale a pena, como sugestão para os leitores do Blog a quem a COPAAEC saúde e deseja um SANTO E FELIZ NATAL do Emanuel – Deus connosco - portador da Paz aos «homens de boa vontade»…
A.G.Pires
O tema da velhice no cruzamento de dois olhares
Maria Luísa Ribeiro Ferreira
Ponto SJ, 12 de Dezembro de 2022
O acaso, que muitas vezes é o critério orientador das minhas leituras, levou a que quase simultaneamente me viessem parar à mão dois textos que de um modo muito próprio (e diferente), abordam o tema da velhice.
Foram eles o livro da escritora Lídia Jorge, intitulado Misericórdia e o artigo do filósofo Manuel Curado “A Alegria de ser velho. Representações portuguesas da velhice “. [1]
Ambos os textos me interpelaram, não só porque começo a sentir (no corpo e na mente) o peso dos anos, mas também porque o assunto é abordado em registos que me são familiares – a literatura e a filosofia.
1. Lídia Jorge
Lídia Jorge, no esplendor da escrita a que nos habituou, apresenta-nos o relato dos últimos tempos da sua mãe, vividos num lar de idosos. E o título da obra, que inicialmente nos intriga, vai sendo paulatinamente compreendido e aceite na medida em que nos embrenhamos nos setenta e um relatos que atribuiu à mãe, Maria Alberta Nunes Amado (no livro mencionada também como dona Alberti).
Num contraste com o cenário circunscrito do lar onde aparentemente deveria dominar a rotina, Lídia Jorge inicia os diferentes capítulos mencionando um atlas que Alberta folheia, discutindo com a noite, à qual se dirige dizendo: “Vence-me, noite, se és capaz…” (pg. 13). A noite perpassa como uma ameaça em todo o livro e reaparece no fim com toda a sua força: “Sem eu dar por isso, a noite havia-me seguido como um animal selvagem segue a presa, acachapada com o chão, encoberta atrás do piano, e agora ali estava ela.” (pg. 455). Na sequência ritmada das noites e dos dias cruzam-se cuidadoras como Nina, Lilimunde e a rápida e eficiente Salomé; as companheiras de mesa das quais se destacam a aristocrata Luísa de Gusmão, a francesa Rita de Lyon e Dona Joaninha “que é filha de peixeiro, mas é educada” (pg. 26). Ana Noronha, a directora, é uma figura afável que atravessa o livro e a quem D. Alberta surpreende perguntando-lhe onde fica Baku (pg. 78).
A monotonia dos dias é quebrada pelo aparecimento de novos habitantes como o Sargento João Almeida “um homem elegante, com o peito saliente, muito mais saliente do que o ventre, ventre liso, como se não comesse nada…” (pg. 56). Não fosse a bengala das quatro ganchorras, o sargento seria a perfeição (pg. 142). Dele recebeu Maria Alberta uma mensagem: “Dona Maria Alberta, mande sempre. Tenho toda a informação de que precisa no meu telemóvel” (pg. 150), um recado precioso que funciona como talismã e, para a mãe de Lídia Jorge, como uma declaração amorosa. Por isso, do princípio ao fim do livro ela conservou este escrito ao qual atribuiu uma conotação amorosa, ficando inconsolável quando pensou tê-lo perdido e retomando a alegria ao reencontrá-lo.
Dona Alberti preenche a solidão recordando episódios do passado, nos tempos felizes em que tratava do jardim, lembrando os canteiros, as sebes e as flores: “(…) um a um reconstituí os canteiros e as sebes. Fechei os olhos. Por esta altura, se acaso a seca o permitir, estão as lantanas carregadas de flores vermelhas.” (pg. 58).
Ao longo do livro Lídia Jorge inclui pequenos escritos de sua mãe, uma prosa em itálico que aparece a rematar alguns capítulos. São desabafos e recordações, as mais das vezes sem data, assinalando os estados de espírito de quem os compôs.
A filha é uma presença constante, quer nas múltiplas visitas que faz ao lar, quer esporadicamente pelo telefone, nas vezes que liga à mãe dos países distantes onde se desloca em trabalho ou em recreio, quer nos desentendimentos e incompreensões que levam a zangas e amuos, sempre ultrapassados pelo amor que a ambas une. As visitas de Lídia são ocasião de prazer, mas também de conflito, os mundos que habitam são diferentes e os valores e os interesses colidem, levando a amuos recíprocos: “No teu lugar não escreveria assim os finais dos livros, procuraria outra forma” (pg. 88). E mesmo quanto ao enredo, a mãe não desiste de aconselhar a escritora, propondo-lhe que se dedique a figuras históricas ou a relatos edificantes: “No conjunto, os teus livros são um vale escavado num deserto repleto de gente pobre”; (…) escreves um livro importante se descreveres Jesus a subir ao céu.” (pg. 114). É uma incompreensão inevitável pois cada uma habita um universo próprio, com as suas regras, objectivos e referências. Mas em Lilimunde, Lina e nos restantes membros do pessoal do lar, na Directora Ana Noronha, nas amigas Joana Amaral, Luísa de Gusmão, Rita de Lyon e em João Almeida – o seu amor secreto – Maria Alberta encontra consolação para o desentendimento com Lídia. O bilhete que J. Almeida lhe enviou termina na afirmação “mande sempre” e é apreciado como uma declaração, uma espécie de talismã a que ela se agarra em momentos sombrios.
No final de cada capítulo há sempre duas ou três linhas da autoria de Alberti, como que a atestar que, embora de modos diferentes, mãe e filha cultivam a arte de escrever. E ao interrogar-se sobre a diferença entre um escritor e uma escritora, a mãe recebe da filha uma resposta desconcertante: “uma escritora é uma mulher que faz amor com o Universo” (pg. 162).
O passar dos dias prossegue rotineiro, com pequenos e grandes incidentes como um ataque de formigas, a récita do livro de Job, as rezas e os cânticos, e as mortes, muitas mortes, que Maria Alberta relata a sua filha. Uns laivos de vontade própria surgem no episódio da fotografia “artística” ao grupo de idosos e idosas, acentuando a sua degenerescência. A sua recusa em participar na foto, influencia as companheiras de mesa, o que levou o cuidador Ali a apelidá-la de “strong” (pg. 281).
A monotonia dos dias é atravessada por eventos que a quebram – Edgar de Paula, o sedutor, a morte do senhor Tó, as novas conquistas de Dona Joaninha, a saída de Igor e de Ali, provocada pelo senhor Gomes e o senhor Tavares, sendo este tratado como a figura do mal – “Amaldiçoado você para sempre, senhor Tavares!” (pg. 352). Lilimunde grávida leva dona Alberti a recordar episódios passados, de riso e de lágrimas. E o desejo de morte quase vence quando se apercebe de ter sido roubada, quer de agasalhos quer da mensagem do sargento Almeida: “Eu tinha feito núpcias com a aventesma escura e havia sobrevivido.” (pg. 394). Mas, apesar de tudo a mensagem preciosa – “Dona Maria Alberta, mande sempre” – é reencontrada.
O ano novo aproxima-se, ano em que Dona Joaninha pede para aprender a ler – “Dona Alberti, para mim o Ano do Carro vai ser o ano em que eu vou aprender a ler” (pg. 410). Os habitantes do lar assistem à largada dos fogos de artifício. Maria Alberta Amado faz várias chamadas, a última das quais dirigida à filha, a quem informa: “vou pedir que se realize aquilo de que tu gostas, que continues sentada debaixo da mesa da História e faças amor com o Universo.” (pg. 418).
O relato tem o seu fim com o isolamento total dos moradores, tal como aconteceu nos diferentes lares do nosso país no período mais agressivo da pandemia. A morte aparece com todos os seus poderes, encarnando na noite que a todos leva no seu rasto. Mas Dona Alberta leva a melhor nesse combate, e as suas últimas palavras são: “Estou cheia de energia, quero voltar ao pátio da escola e saltar até me voar o chapéu.”(pg. 457).
É assim que a noite acaba por não a vencer.
2. Manuel Curado
Vejamos agora o texto de Manuel Curado que no início referimos. Dele relevamos as três primeiras partes, onde o título – “A alegria de ser Velho” – parece uma ironia dado que, numa leitura imediata podemos concluir que “ninguém associa felicidade e velhice.” (pg. 5). De facto, somos constantemente inundados nos media por pessoas novas e bonitas, há inúmeros fármacos a propor rejuvenescimento e o tema da juventude eterna surge como ideal a alcançar. Ora a pandemia veio mostrar a falsidade destas teses, evidenciando que, afinal, todos somos vulneráveis.
Embora Manuel Curado seja filósofo, neste texto que escreveu recorre à literatura, apresentando-nos um conjunto de escritores portugueses que se debruçaram sobre o tema do envelhecimento. Iremos considerar apenas a primeira parte do seu artigo. Nela se comenta um livro de Mário Duarte intitulado Aquário, uma obra em que o autor relata a experiência vivida como cuidador, num lar de velhos na Holanda. [2]
O retrato que nos é traçado desta casa de acolhimento, num país dito “civilizado”, sublinha as preocupações essenciais do pessoal que lá trabalha, ou seja, alimentar, lavar e vestir os idosos e as idosas que aí vivem, procurando mantê-los vivos. E a imagem que nos é dada da instituição é a de um aquário, ou seja, um lugar onde todos se mantêm vivos embora “a morte não surpreenda ninguém” (ob. cit., pg. 13). É um trabalho mecânico pois todos os dias e às mesmas horas os mesmos gestos de cuidado se repetem, sem grande preocupação em quebrar a monotonia que inevitavelmente domina. O objectivo principal é manter os idosos lavados, alimentados e vestidos, assegurando a manutenção da sua existência física. As condições desse lar são excelentes, a arquitectura é agradável, a comida é boa mas, no dizer de Mário Duarte (que Manuel Curado cita): “a luta diária é a batalha contra a urina.” (pg. 18). Muito mais do que fomentar conversas ou promover distracções, o que importa é manter os “peixes” desse “aquário” limpos e de saúde. E Manuel Curado selecciona passos do texto de Mário Duarte em que essas “pessoas-peixes” são observadas ao longo do dia – uns dormem sentados, outros falam sozinhos, outros aparentemente procuram a saída.
Os próprios cuidadores procuram defender-se desta atmosfera deprimente, evitando ligar-se afectivamente aos asilados. Há toda uma ética do cuidado que se mantém, mas que parece adormecida nos seus aspectos positivos, pelo trabalho mecânico e árduo que é pedido a todos e a todas que trabalham neste lar. As visitas são raras e “a comunicação entre visitantes e visitados não chega a acontecer (…) há palavras que já não se dizem.” (pg. 14).
O objectivo dos dirigentes da instituição é mostrar que os ocupantes do lar são bem tratados. E de facto isso acontece, o que sossega a consciência dos familiares. Mas Manuel Curado conclui que “a gentileza das visitas e a arquitectura sofisticada da casa de vidro escondem a prisão total de onde os velhos nunca sairão (pg. 15). [3]
Confrontando os dois relatos, necessariamente diferentes por diferentes serem as personagens que os habitam e os contextos em que acção decorre, verificamos, no entanto, que no romance Aquário há uma ausência e essa falha ou falta é precisamente a misericórdia. No lar de idosos holandeses as pessoas são bem tratadas e procura-se dar o conforto possível a quem está diminuído, quer pela idade quer pela doença. Mas o romance de Lídia Jorge faz jus ao seu título pois, embora nem sempre de um modo explícito, é inegável que a misericórdia está presente, manifestando-se nos pequenos gestos dos cuidadores e cuidadoras, na compaixão por vezes irritada da autora que nem sempre compreende as dores da mãe, na amizade que se estabelece entre os habitantes do lar irmanados numa mesma fragilidade, na resistência que os une numa mesma luta para se manterem vivos. O que me lembra Espinosa e a força do “conatus” que habita em cada ser pois, para o filósofo judeu, uma pedra, um animal ou um ser humano oferecem resistência à destruição que a todos se coloca como ameaça: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar no seu ser”, escreve ele na sua Ética.[4] Mas aquilo que nos une a todos os seres que existem, não impede no entanto as diferenças que entre eles se estabelecem. E certamente, uma das qualidades que distingue os humanos dos outros habitantes da terra, é a sua capacidade de misericórdia pela qual conseguem colocar-se no lugar do outro, sentindo as suas dores e partilhando-as de um modo compassivo. Mais uma vez recorrendo ao filósofo judeu lembramos como ele define a misericórdia no livro III da Ética, onde nos apresenta a definição dos afectos: “A misericórdia é o amor na medida em que o homem é afectado de tal maneira, que se regozija com o bem alheio e, pelo contrário, se entristece com o mal alheio.”[5]
É esse o olhar que falta no Aquário de Mário Duarte, mas que atravessa, da primeira à última página, o livro de Lídia Jorge. Daí o modo necessariamente diferente como nos apresentam a velhice.
NOTAS
[1] Lídia Jorge, Misericórdia, Lisboa, D. Quixote, 2022; Manuel Curado, “A Alegria de ser Velho. Representações Portuguesas da Velhice”, in Igreja e Missão. Revista Missionária de Cultura e Actualidade, Janeiro – Abril 2022, ano 75, pgs. 5-36.
[2] Mário Duarte, Aquário. Reportagens Poéticas de um Asilo Holandês para Velhos, Lisboa, Círculo de Poesia, Moraes Editores, 1979.
[3] Limitamo-nos a abordar parcialmente o texto de Manuel Curado que continua numa linha diferente, revisitando toda uma série de autores portugueses que escreveram sobre a velhice, dando-nos dela uma perspectiva mais optimista.
[4] Espinosa, Ética, III, prop. VI, (Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio, Lisboa, Relógio d’Água, 2020, pg. 209).
[5] Espinosa, Ética, III, Explicação XXIV, ed. cit., pg. 255.