AVENTURA SEM RETORNO
Oliveira
Com a devida vénia, partilhamos um artigo de Pedro Vaz Patto, publicado no jornal digital ‘Sete Margens’ sobre um tema da actualidade: a guerra na Ucrânia.
AGPires
“Seis meses de avanços e recuos sem um fim no horizonte” – assim uma notícia de há dois meses retratava a evolução da guerra na Ucrânia. Os cenários de morte e destruição vão-se repetindo e a eles quase nos habituamos. A contabilidade de vidas perdidas, de um e de outro lado, cresce de dia para dia. O que aparenta ser uma inversão da tendência de derrota está longe de ser uma vitória e desencadeia uma mais forte reacção contrária gerando uma espiral interminável. Entretanto, as consequências indirectas da guerra traduzem-se numa crise económica mundial que a todos afecta, a uns (os mais vulneráveis, como quase sempre) mais do que a outros. Procuram-se paliativos para atenuar esses efeitos, mas, verdadeiramente, só o fim da guerra permitirá superar essa crise. Não podem deixar de nos vir à mente palavras que denunciam vigorosamente o absurdo da guerra. As dos sucessivos pontífices, por exemplo. “Massacre inútil” (“inutile strage”) – clamou Bento XIV nas vésperas da I Guerra Mundial. “Nada se perde com a paz, tudo pode ser perdido com a guerra” – afirmou Pio XII pouco antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial. “A guerra é uma aventura sem retorno” – disse São João Paulo II a propósito da guerra no Iraque, que procurou evitar a todo o custo. Também neste caso da Ucrânia, sabemos como começou a guerra, não sabemos ainda hoje como vai terminar e que danos ainda vai provocar. É mesmo uma “aventura sem retorno”. É certo que denunciar sem mais o absurdo de qualquer guerra pode acarretar o perigo de não distinguir a responsabilidade de quem agride e a de quem se defende da agressão, como se fossem ambos culpados. Quando é nítida essa diferença de responsabilidades, o apelo ao fim da guerra há de dirigir-se, antes de mais, a quem agride, não pode é ser um convite à capitulação de quem se defende. O Papa Francisco recordou há dias, na linha do Catecismo da Igreja Católica (n. 2308) a legitimidade de quem se defende de uma agressão injusta, como sucede actualmente com a Ucrânia. A defesa contra uma agressão injusta pode ser uma exigência do amor para com a Pátria que é agredida. E é legítimo que outras nações ajudem essa defesa, na estrita medida do necessário, sem, porém, alimentar uma escalada de retorsão. No entanto, o Papa também continua a apelar ao fim da guerra através dos meios da diplomacia. Neste aspecto, já se distancia claramente das vozes mais comuns, que só aceitam a vitória incondicional da Ucrânia, sem qualquer tipo de cedência, porque qualquer cedência será uma forma de premiar o infractor. Neste contexto, é certo que nenhum dos contendores quererá dar um primeiro passo que represente a mínima forma de reconhecer alguma razão ao adversário, desde logo por uma questão de honra. Notei claramente uma atitude destas em declarações dos meus colegas da comissão Justiça e Paz da Igreja greco-católica ucraniana, que pareciam advogar uma absoluta intransigência e a resistência até à morte do último soldado. Poder-se-á acusar o Papa de ingenuidade ao apelar à diplomacia neste contexto. Mas talvez seja ainda mais ingénuo e irrealista esperar uma vitória certa, plena e a breve prazo de qualquer das partes. Realista é pensar que da guerra ninguém sai verdadeiramente vencedor, que a destruição e morte por ela inevitavelmente geradas e as feridas que hão de permanecer para sempre impedem sempre de falar em vitória. A guerra de defesa pode ser moralmente legítima, mas outras condições de legitimidade da guerra devem também, de acordo com o Catecismo da Igreja Católica (n.º 1309), verificar-se, como a de que haja possibilidades sérias de êxito e a de que os males que ela acarreta não sejam superiores aos males que se pretende evitar (onde se inclui também, certamente, a necessidade de evitar a repetição de agressões no futuro).
São estas condições que justificam o recurso à diplomacia mesmo nas condições actuais, mesmo quando é clara a existência de um agressor e de um agredido. É verdade que ceder a algumas das exigências do infractor pode ser uma forma de o premiar e, desse modo, incentivar futuras agressões, da sua parte ou de outros potenciais agressores. Há que evitar que isso suceda. Mas tal não compromete qualquer tentativa de negociação diplomática. Reconhecer alguma razão ao adversário e aceitar alguma das suas exigências não é desonroso (não faz “perder a face”) e não significa necessariamente premiar o infractor. Reconhecer, por exemplo, que as pessoas de língua materna russa que de há muito vivem na Ucrânia têm direito à protecção da sua especificidade cultural não é ceder a nenhuma imposição arbitrária. A vida humana e a paz são bens de valor imenso, que justificam até cedências maiores do que uma estrita justiça permitiria (“summun ius, summa iniuria” – já diziam os antigos). Cedências que não devem ser vistas como uma capitulação, mas como um reconhecimento do valor supremo desses bens.
Pedro Vaz Patto