(Partilho um texto de Alberto Gonçalves do "Observado", com a devida vénia.)
No fundo, a nossa extrema-esquerda faz hoje aos ucranianos o que faz connosco desde 1974: inventariar e denunciar nazis, que por regra são todos os sujeitos que não alinham na extrema-esquerda.
07 Mai 2022, ‘Observador Alberto Gonçalves
Antes da invasão russa, o PCP e o Bloco fartaram-se de avisar que a Ucrânia estava repleta de nazis. Quem lesse o “Avante!” e o site Esquerda.net conhecia o Batalhão Azov como os espectadores da RTP nos anos 1970 conheciam Badaró. Aliás, um dos leitores dos referidos órgãos informativos terá sido o sr. Putin, que indignado com tamanho regabofe enviou tropas para “desnazificar” o país vizinho. Os ingénuos tentaram notar que não é comum um regime nacional-socialista organizar eleições livres, ser presidido por um judeu e manter boas relações com Israel. Felizmente, o sr. Putin não se deixou iludir pelas aparências e preferiu confiar na “inteligência” portuguesa, constituída por dois partidos leninistas, meia-dúzia de comentadores isentos e 35 generais, mumificados no PREC, que vão às televisões desmascarar a submissão ucraniana ao Terceiro Reich.
Dois meses e meio depois, constata-se que a “desnazificação” daquilo não é fácil. E não é fácil porque a “nazificação” não é óbvia. A ideia de que as ruas de Kiev eram possuídas por multidões a gritar “Heil, Zelensky!” não se confirmou. O pressuposto, sensato, de que haveria no Donbass campos de extermínio cheiinhos de separatistas pró-russos também não. Os ucranianos são nazis, não são burros: as provas das suas pérfidas convicções primam pela subtileza subtis e exigem investigação minuciosa e peneira fina. Felizmente, as “redes sociais” dispõem de investigadores e peneirentos em abundância. Num ápice, iniciou-se a caça à suástica e à Cruz de Ferro.
A partir de apartamentos no Cacém e em Gaia, caçadores argutos procederam à análise das imagens do conflito em busca dos nefastos símbolos. E, sem surpresas, encontraram-no com frequência, quer na parafernália militar, quer em manifestações de civis, quer até numa camisola desportiva nas mãos do próprio Zelensky. É verdade que, nuns casos, a suástica fora acrescentada mediante Photoshop, e noutros a Cruz de Ferro não era bem a Cruz de Ferro e sim o emblema do exército ucraniano. Porém, os pormenores não beliscam o essencial. Um repórter da TVI descobriu numa casa abandonada um exemplar do “Mein Kampf”, no original alemão para que o sumo não se perdesse na tradução. Pelo amor de Deus: eu mesmo vi as filmagens de uma criança ucraniana a prometer matar russos enquanto esticava o bracinho. Embora a criança envergasse um lenço “fedayin” e berrasse “Alá é grande”, e o vídeo fosse de 2015 e divulgado pelo Estado Islâmico, é impossível restarem dúvidas: a Ucrânia é nazi.
De resto, a percentagem de nazismo é irrelevante. Ainda que houvesse uma única “t-shirt” de Goebbels em Donetsk, a invasão estaria plenamente justificada. À luz do direito internacional, versão revista e anotada por Mariana Mortágua, é perfeitamente legítimo que uma ditadura liderada por um ex-agente do KGB procure resgatar, através dos respectivos bombardeamentos e chacinas, cada povo que o ex-agente do KGB considera em risco de cedência ao jugo hitleriano. A Ucrânia, que quando acabar de enterrar os mortos saberá agradecer a ajuda, foi apenas o primeiro. Talvez se siga a Suécia, onde o Kremlin já detectou três proto-nazis: a criadora da Pipi das Meias Altas, o fundador do Ikea e o cineasta Ingmar Bergman. Com jeito, se vasculharem fotografias de Estocolmo, arranjam mais um ou dois, e desta vez vivos. Os suecos têm razões para andar receosos. E os portugueses têm razões para entrar em pânico – ou em êxtase, depende da perspectiva.
É um facto amplamente demonstrado que Portugal não há três nazis. Nem uma dúzia. Nem sete mil. Há quase meio século que a extrema-esquerda, algum PS incluído, fareja por cá quantidades incomensuráveis de indivíduos pertencentes a essa sub-espécie. Por educação ou cortesia, pode chamar-lhes “fascistas”, “capitalistas”, “imperialistas”, “colonialistas”, “neo-liberais” ou “bandalhos de extrema-direita”. Mas que ninguém se engane: trata-se de nazis, resmas de nazis, magotes de nazis a fervilhar, quais larvas, do Minho aos Algarves. Até agora, julgo que só a distância impedia que o sr. Putin nos salvasse. Agora, com a tecnologia “hipersónica” que tanto excita os generais na televisão, nada impede.
No fundo, a nossa extrema-esquerda faz hoje aos ucranianos o que faz connosco desde 1974: inventariar e denunciar nazis, que por regra são todos os sujeitos que não alinham na extrema-esquerda. E a nossa extrema-esquerda sonha desde 1974 que alguém faça connosco o que o sr. Putin faz hoje aos ucranianos. Por curiosa coincidência, o ódio às democracias, a desumanização do inimigo e o apetite de aniquilação são o que define os nazis que não temos e os comunistas, de seitas sortidas, que temos de sobra. Durante 48 anos, deixámos que os comunistas criassem as regras do jogo e o jogassem à vontade. Jamais suspeitámos o resultado do jogo caso eles o ganhassem. Espero que a invasão da Ucrânia nos tenha dado uma ideia.