Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

CONFEDERAÇÃO PORTUGUESA DE ANTIGOS/AS ALUNOS/AS DO ENSINO CATÓLICO

Espaço aberto a comunicações de antigos alunos do ensino católico em Portugal.

Espaço aberto a comunicações de antigos alunos do ensino católico em Portugal.

CONFEDERAÇÃO PORTUGUESA DE ANTIGOS/AS ALUNOS/AS DO ENSINO CATÓLICO

30
Jul24

NA ESTRATOSFERA DA MENTE


Oliveira

Pelo que contêm de muito actual e oportuno, a COPAAEC propõe para leitura e reflexão mais um artigo do jornalista A. Cunha Justo. Oportuno e conveniente, apesar de tudo…

(A. G. Pires)

A NOVA IDADE

Num palco moderno, tudo respira,

A dança dos media que o mundo admira.

Cada mente, uma pedra voadora,

Vê sem olhar, sempre de fora.

 

Nos picos da cultura agora agonizante

Lobos uivam, alcateia assaltante!

Texto? Quem liga? Só interessa o sabor,

Dos factos transformados em vapor.

 

Num curto-circuito, sem origem nem fim,

A verdade é um jogo, um pobre arlequim. (postfactual!)

Círculos giram, interesses se enlaçam,

E o ego pequeno, a servir quem manda.

 

Humanos reduzidos à mera situação

Submissos à mente, longe do coração.

A cultura tornada fruto de uma mente vazia,

Onde o ego se dobra, em hipocrisia.

 

Neste reino de crime e injustiça velada,

Rebeldia é a luz, a esperança encenada.

Ironia dançante, oculta insubmissão

Na sombra da ordem, espera a salvação

António CD Justo

In Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=9494

http://poesiajusto.blogspot.com/

30
Jul24

CULTURA DECADENTE ABSORTA EM TRIVIALIDADES


Oliveira

Pelo que contêm de muito actual e oportuno, a COPAAEC propõe para leitura e reflexão mais um artigo do jornalista A. Cunha Justo. Oportuno e conveniente, apesar de tudo…

(A. G. Pires)

Europa a livrar-se de si mesma servindo-se da Arte como Serva da Política

Premissa crítica: A História ensina que as civilizações só subsistem enquanto o poder político-económico e o poder ideológico-religioso se mantiverem ligados e interagirem de maneira complementar em interacção orgânica e de maneira inclusiva. A União Europeia segue no sentido contrário contrapondo o poder político-económico ao poder cultural, lutando mesmo activamente contra a própria tradição. Deste modo abre as portas ao autoritarismo de elites anónimas deixando a sociedade europeia à deriva e institucionalmente aberta para uma perspectiva de futuro sustentável do tipo islâmico ou do socialismo chinês. É natural e saudável que o povo brinque, mas essa não deveria ser a missão de quem dirige!

Na União Europeia tudo indica culturalmente que nos encontramos em pleno centro da cultura do declínio apesar do progresso técnico criado; uma leve observação do comportamento de governantes e das populações dá a impressão de todos terem entrado num estádio de puberdade já senil...

Nas praças públicas da sociedade encena-se cada vez mais uma arte barata que vive do voyeurismo e do exibicionismo que provocam sensibilidades e sentimentos religiosos, com atuações em torno da história bíblica, como são, entre outras, as da actriz Sara Cancerio que como freira nua, procura saciar os gostos da imaginação sexual do seu público e ao mesmo tempo provocar ondas de repulsa nos não consumidores. Não se trata já de corrigir e aperfeiçoar o passado ou costumes actuais, mas, simplesmente, de os destruir sem a responsabilidade de apresentar alternativas. Basta um oportunismo camuflado de ideias peregrinas como as do igualitarismo aliado ao liberalismo do sistema. Para se estar em dia tem de se recorrer aos ingredientes sexo e anti religião...

“Quando uma célula do corpo começa a multiplicar-se à custa de todo o organismo, destruindo os tecidos circundantes e espalhando-se para outros órgãos, roubando-lhe a sua energia, incapacitando as suas defesas e, em última análise, ameaçando a sua vida, chamamos a este crescimento descontrolado cancro. Uma tal mudança maligna pode ser observada no nosso mundo actual.…”

Nas velhas monarquias o poder político secular servia-se da arte religiosa para transmitir os valores que davam sustentabilidade ao poder de caracter linear ascendente e nas democracias modernas ocidentais o poder secular serve-se da arte para assegurar o seu poder momentâneo de caracter circular. Na cultura ocidental a arte assume, a passos largos, o papel da religião... Neste sentido, surgem, por todo o lado, os novos xamanes que se apropriam das palavras e ritos do passado para os devassar e assim justificar gratuitamente  atitudes dos sublevados  na sua missão de desconstrução da cultura ocidental, recorrendo para isso a preconceitos sobre o masculino e o feminino, numa sociedade contraditória a afirmar-se com uma matriz cada vez mais masculinizada e agressiva.

O ponto fraco da democracia reside no facto de políticos e eleitos se sentirem também chamados a seguir qualquer capricho individualista e narcisista que lhes apareça...

O imperador Constantino (Édito de Milão de 313) teve uma ideia genial para conseguir manter o poder político e a unidade do Império Romano, recorrendo à religião cristã, conseguindo assim prolongá-lo até à queda do império romano (476), minado pelas forças bárbaras. A ideia de Constantino encontrou depois  a sua  realização  na fundação do  novo Império do Ocidente com a coroação de Carlos Magno para imperador no ano 800 quando  reuniu  em si o poder político e o poder religioso, condição necessária para a criação da civilização  europeia (a separação institucional do poder religioso e do poder secular, salvaguarda a responsabilidade de o governante não poder agir a seu bel-prazer por haver um outro poder sublime (defesa do Bem, do Belo e do Verdadeiro) a que devia prestar contas; o grande perigo que hoje se observa na civilização ocidental é o facto de o poder político-económico não ter de prestar contas a ninguém...

Carlos Magno seguia a estratégia de dominar os povos vizinhos com a espada e pacificá-los assimilando-os na cultura cristã implementada através dos conventos (Deste modo possibilitou a formação de uma Europa baseada numa ideia imperial cultural prolongada através das nações!). No seguimento da mesma estratégia e a pretexto da União Europeia dá-se continuação à velha luta entre saxões e eslavos, hoje reactivada entre o Ocidente e a Rússia.

A prática hodierna do poder político-económico renunciar à religião (que lhe possibilitou a sua estruturação) e substituir o seu papel por alguns valores de caracter apenas racional, baseados numa agenda de valores securitizados na Constituição, conduz necessariamente a um poder económico-político ditatorial ou a contínuos conflitos sociais insuportáveis e destrutivos que conduzem à tribalização da sociedade. Não chegam medidas utilitárias e pragmáticas para se fomentar uma União Europeia digna da Europa, para isso precisa-se de um conceito visionário consistente e de caracter sustentável; seria necessário voltar-se ao ideário dos pioneiros da União Europeia...

A crise em que se encontram as sociedades actuais e em especial a sociedade europeia  é de alto risco porque expressa uma época de confrontação mental baseada na luta contra a tradição e valores da cultura ocidental. Não a querem ver sujeita ao processo de clivagem ou teste do tempo como se dava no passado.  Querem implantar uma nova cultura criada artificialmente com novas éticas que facilitem o globalismo liberal materialista servindo-se para isso também das novas técnicas biológicas e digitais. Em vez de corrigirem o eurocentrismo e a hegemonia de tradições filosóficas intelectuais, no sentido de uma transculturalidade respeitadora das tradições culturais específicas querem fazer da cultura ocidental tabula rasa e para isso em todas as vertentes artísticas e ideológicas se observa a desmontagem do cristianismo.

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=9498

20
Jun24

SESSÃO EVOCATIVA DOS 40 ANOS DA LEI DO ABORTO DE 1984

IMPERDÍVEL!!! QUINTA-FEIRA, 27 DE JUNHO, ÀS 21H30


Oliveira

Partilho informação importante enviada pelo Dr. António Torres, membro da Federação em Defesa da Vida.

(A. Oliveira)

 

Caros amigos

É já daqui a uns 8 dias que na Casa de S. Mamede (R. da Escola Politécnica 159, 1250-100 Lisboa) às 21h30 do dia 27 de Junho, terá lugar uma sessão evocativa dos 40 anos, ocorridos este mês de Maio, sobre a Lei do aborto de 1984.

Convidámos alguns dos protagonistas do debate de então (Graça Mira Delgado [MDV], Professores Mário Pinto e António Gentil MartinsHenrique Mota [editor] e Bernardo Ribeiro da Cunha [diplomata]) para num diálogo com a Margarida Neto, presidente dos Médicos Católicos, nos contarem como foi esse debate, qual a argumentação da altura, principais momentos e lições. Antes desta conversa será exibido um filme de 5 minutos (produzido pelo Luis Silva de Aveiro) para dar o enquadramento nacional e internacional naqueles anos. Vai ser um momento extraordinário e imperdível!

Em anexo encontram as imagens para divulgação deste evento. Divulguem, por favor!

Um abraço e até breve!

António Pinheiro Torres

40 anos da lei do aborto de 1984 Como foi o debate

40 anos da lei do aborto de 1984 Como foi o debate

09
Jun24

EUROPA EM ELEIÇÕES EM MOMENTO DE CRISE E DE VIRAGEM


Oliveira

Pelo que contêm de muito actual e oportuno, a COPAAEC propõe para leitura e reflexão mais um artigo do jornalista A. Cunha Justo. Oportuno e conveniente, apesar de tudo…

(A. G. Pires)

Tentativa falhada de construir uma Sociedade aberta sem contar com o próprio Povo?

 

A única instituição da União Europeia (EU) legitimada democraticamente é o Parlamento Europeu e daí a importância de fortalecê-lo participando nas eleições.

Pela observação das constelações partidárias na concorrência pelo poder, tudo leva a indicar que os novos assentos no parlamento irão desestabilizar a ala esquerda que até agora determinava os destinos da Europa.

Von der Leyen, actual Presidente da Comissão Europeia desde 2019, já reagiu às sondagens e para assegurar a sua reeleição de Presidente viu-se obrigada a cortejar Georgia Meloni (chefe do governo italiano, que é contra o aborto), porque conta que o poder no parlamento se deslocará para a direita.

A causa da direita estar a afirmar-se em relação à esquerda não se deve ao extremismo mas à necessidade de correcção de políticas que há dezenas de anos têm determinado as atitudes dos governos na Europa...

Um projecto europeu, de conotação militarista, surgido tardiamente e à sombra dos Estados Unidos contra a Rússia, encontra-se na mesma linha que criou as condições para os actuais movimentos de contestação....

Os conservadores pretendem que a União Europeia restitua competências e poderes soberanos aos estados membros e que a Europa se governe por interesses próprios no sentido de se ganhar peso geopolítico num mundo que se encontra na fase de passar da unipolaridade mundial regida pelos EUA para a fase da multipolaridade de blocos globais.

A nível cultural os conservadores manifestam-se contra a introdução do aborto (IVG) no código dos direitos humanos (políticas pró-abortivas que fortalecem o enfraquecimento demográfico do próprio país e fomentam ainda mais a necessidade de fortalecer a imigração); um outro ponto crucial é o envolvimento europeu na guerra da Ucrânia, contra o poder que instituições não legitimadas democraticamente  terem o poder de impor aos Estados  agendas tanto a nível militar (NATO), a nível de saúde (OMS) como de educação (degradação da qualidade de ensino em benefício de ideologização).

A polarização do discurso público em termos de opções únicas Ocidente ou a Rússia obrigam a ignorar interesses de compromisso que favoreceriam a perspectiva europeia (Uma Europa desde Lisboa aos Urais). Isto vem-se juntar à observação de uma política globalista de organizações não eleitas que determinam as políticas nacionais que se desejariam mais democráticas e de orientação mais regional...

A União Europeia merecerá ser restaurada e afirmada no sentido de seguir em frente sem se perderem as pegadas do Cristianismo que possibilitou a formação da Europa começada propriamente com Carlos Magno no ano 800...

Para isso a Europa não pode ser medida apenas pela afirmação dos interesses do capitalismo liberalista (muito embora o poder económico seja o factor determinante do desenvolvimento e do comportamento dos povos) nem do poder socialista...

Desde os anos 60 o progressismo tem-se afirmado demasiadamente sem ter em conta que para tal ele precisaria do tapete conservador (tradição) que o suporte (Torna-se ilusório querer transformar uma cultura num constructo sem povo!). Só uma consciência humanista, solidária e de consciência complementar poderão dar resposta a um futuro estável e aberto.

Estamos todos no mesmo barco onde o lógico seria entender-se e aceitar-se uns aos outros, quando pelo contrário com tanto barulho que fazemos, nem chegamos a perceber para onde o barco vai.

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=9337

07
Jun24

Eleições 2024. União Europeia, a bela adormecida

Opinião


Oliveira

Partilhamos um artigo de Opinião de João Abel de Freitas, publicado ontem no "jornal Económico".

(A.G. Pires)

O panorama que se vislumbra para o PE é do maior melindre pelas suas repercussões na composição futura dos órgãos de governação da UE e, por consequência, na determinação do conteúdo das decisões políticas nos próximos cinco anos.

joao-abel-freitas_Final.png

03
Jun24

O aborto voluntário não é um direito da mulher


Oliveira

Com a devida vénia, transcrevemos para os leitores do nosso Blog o artigo que segue, do Dr. Mário Pinto, já publicado no jornal Observador.

(A. G. Pires)

foto_mariopinto.webp

Mário Pinto
Professor catedrático da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.
 

Se a vida do nascituro é vida humana e a vida humana é direito inviolável, não se pode conceber um outro específico direito fundamental a violar directamente este direito fundamental, logo inviolável.

1 Dia sim, dia não, a propósito ou a despropósito, há sempre entre nós uma voz publicada com destaque dizendo que o aborto voluntário é um direito da mulher. E, por esta curta expressão, sem determinar quaisquer limitações ou condições, insinuando que se trata de um direito fundamental e absoluto. Por vezes, até vozes de juristas. O que é muito surpreendente, porque tal não é verdade, nem pode ser. O constitucionalismo humanista proclamado na Revolução Liberal dos fins do século XVIII confirmou a anterior fortíssima e milenar tradição no reconhecimento de que a vida da pessoa humana é inviolável, desde a sua concepção. Como se pode confirmar pela legislação punitiva do aborto que se seguiu a essas setecentistas Declaraçõesde Direitos Humanos. Esta concepção foi também reconhecida, agora com alcance universal, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948: «Toda a pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal» (art. 3.º da DUDH). E está também consagrada na Constituição Política da República Portuguesa, que a gravou assim no art. 24.º: «A vida humana é irrevogável. Em caso algum haverá pena de morte».

2 Ora, a interpretação consensual desta norma jurídica, já confirmada pelo Tribunal Constitucional Português, é que o disposto no art. 24.º da Constituição, que declara a vida humana como inviolável, abrange a vida do nascituro. E, de acordo com tal interpretação, o Código Penal tem um Capítulo expressamente dedicado aos «crimes contra a vida intra-uterina». Onde apenas se admitem alguns poucos casos-tipo de «Interrupção da gravidez não punível». Entre os quais casos, diz o Código Penal, no art. 142.º: «Não é punível a interrupção da gravidez «efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando […] for realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.» Nada, portanto, que se pareça com direitos da mulher; mas apenas caso em que a ilicitude criminal não é punível, sem deixar de ser ilicitude criminal.

3 A ciência evidencia que, desde a concepção até à morte natural, há sem dúvida desenvolvimento da pessoa humana, mas não há solução de continuidade entre a vida do nascituro e a vida do já nascido. É impossível provar que a vida do nascituro ainda não é vida humana. Portanto, se a vida do nascituro é vida humana, e a vida humana é um direito inviolável, não se pode conceber um outro específico direito fundamental a violar directamente este direito fundamental, por definição inviolável. O único caso em que se pode configurar uma violação legítima do direito à vida humana é no caso clássico da legítima defesa, em que aquele que defende o seu direito à vida pode legitimamente violar o direito à vida daquele que viola o seu direito à vida, se tal for ponderadamente indispensável a essa defesa. Mas este caso só se aplica à situação bem conhecida em que medicamente haja que optar entre a vida da mãe e a vida do filho, por exemplo durante o parto. No caso típico do aborto voluntário, o filho gerado não ameaça tirar a vida à sua mãe.

4 O que o Tribunal Constitucional reconheceu foi que o exercício do «direito de liberdade [da mulher-mãe] de desenvolver um projecto de vida […], como expressão do desenvolvimento da sua personalidade», é condicionado pela vida do filho nascituro. E o que finalmente decidiu, numa sua dramática deliberação de apenas sete contra seis votos, e com seis declarações de voto de vencidos de arrasadora fundamentação, foi que a mãe pode evitar esse condicionamento da sua liberdade por via da sua provocação da morte do seu filho, evitando a respectiva punição penal desse crime contra vida intra-uterina do seu filho. Assim o Tribunal Constitucional não reconheceu às mulheres um original direito fundamental ao aborto voluntário fundado na propriedade do seu corpo, como constantemente se propagandeia.

5 Na sua decisão, a maioria do Tribunal Constitucional cometeu dois erros graves. O primeiro erro foi o de dar por descontado que o alegado conflito de direitos fundamentais entre a mãe e o filho é um conflito entre duas iguais ofensas de direitos. Ora, tal não é verdade. A liberdade da mulher-mãe de organizar a sua vida não é ofendida com o seu sacrifício total e definitivo pela vida do filho; ela continua a poder organizar a sua vida ainda que em circunstâncias diferentes. Mas, na posição inversa, pretende-se que a liberdade da mulher a organizar a sua vida possa exigir o sacrifício total e definitivo da vida (inviolável) do filho. Por outras palavras: a garantia da vida do filho não impede completamente o exercício do direito da mãe, que pode sempre continuar a organizar a sua vida, embora em termos diferentes. Mas a garantia da liberdade da mãe é entendida como impedindo total e defintivamente que o filho possa continuar a viver, ainda que em termos diferentes.

6 Ora, a verdade é que todos os direitos humanos se ajustam, no seu exercício, ao respeito e à promoção dos direitos e dos deveres humanos, uns dos outros. E sublinhe-se: não só dos direitos, como também dos deveres, enquanto igualmente fundamentais. A Parte Primeira da Constituição Portuguesa, onde se inclui o reconhecimento e a garantia do direito à vida e do direito ao desenvolvimnto da personaliadade, tem por rubrica «Direitos e Deveres Fundametais». Todos os direitos e deveres humanos são sistémicos, com base na unidade incindível da dignidade da pessoa humana. E portanto não é legítimo impor a nenhum deles, no seu ajustamento, a sua extinção total e definitiva. Se fosse assim, todos os direitos humanos seriam condicionais, porque todos são condicionantes uns dos outros. Portanto, o direito de viver ajusta-se aos direitos dos outros; mas para tanto não lhe pode ser imposta a sua extinção. Do mesmo modo, e na mesma medida, o direito a organizar a vida pessoal também se deve ajustar aos direitos dos outros; sem que se lhe seja atribuída o direito de extinguir os direitos dos outros. Ora bem, com base nesta lógica categórica, o direito da mulher-mãe à organização da sua vida tem que se ajustar à vida do filho, sem que para isso este direito seja extinto. Do mesmo modo que a vida do filho tem de se ajustar à organização da vida da sua mãe, sem que por causa disso possa ser definitivamente extinto.

7 O segundo erro cometido pelo Tribunal Constitucional foi o de afirmar que o método que inventou para o ajustamento no gozo dos dois direitos, o direito da mãe e o direito do filho, é um método equilibrado. Trata-se do chamado método dos prazos, que praticamente (e isto é o que importa) se traduz em dar à mulher um prazo para decidir, em seu completo e incontrolado arbítrio, se quer ou não sacrificar completa e definitivamente o direito à vida do filho, em favor do seu direito a organizar a sua vida sem qualquer ajustamento ao direito da vida do filho. Como é evidente, este «método dos prazos» é um falso equilíbrio, porque a liberdade da mãe é sempre vencedora e a vida do filho resulta sempre dependente do exercício da liberdade da mãe. A vida do filho nunca sacrifica a liberdade da mãe, porque essa liberdade só é sacrificada se a mãe quiser. E a liberdade da mãe sacrifica sempre que queira a vida do filho. De facto, o alegado equilíbrio que se obtém para o gozo destes dois direitos fundamentais de liberdade pelo «método dos prazos» é um perfeito sofisma.

8 Note-se, ainda, que o Tribunal Constitucional cometeu os dois referidos erros com a agravante de considerar tipicamente que a mulher é completamente irresponsável na concepção do seu filho; e que ela está completamente desprotegida pela Sociedade e pelo Estado nos encargos da sua maternidade. O que não é verdade: nem uma coisa nem outra.

9 Por fim, seja-nos permitido recordar a opinião de um ilustre professor universitário, jurista, filósofo e politólogo, com grande e ainda actual reputação internacional, se bem que entretanto já falecido, Norberto Bobbio, senador vitalício italiano, referência como defensor do liberalismo laico, que verberou asperamente os liberais e laicos defensores do direito ao aborto, porque negam o imperativo categórico do respeito pela vida humana. Numa histórica entrevista, e criticando o argumento que invoca o direito das mulheres ao aborto com base no direito sobre o seu corpo, ele respondeu assim: «as feministas dizem: “o corpo é meu e sou eu que mando nele”. Parece uma perfeita aplicação de um princípio. Eu, pelo contrário, digo que é aberrante aplicá-lo ao aborto. […] No caso do aborto, há um outro corpo no corpo da mulher. O suicida dispõe da sua única vida. No aborto dispõe-se da vida de um outro.» Norberto Bobbio afirmou ainda expressamente que «o nascituro tem o direito fundamental de nascer». E defendeu que o direito de nascer é precedente dos direitos da mulher e da sociedade, por estas palavras: «o primeiro, o [direito] do nascituro, é fundamental; os outros, o da mulher e o da sociedade, são derivados.» E quando o entrevistador lhe observou que a sua posição era surpreendente num laico, ele respondeu: «Eu perguntaria que surpresa pode haver no facto de um laico considerar o não matar como válido, em sentido absoluto, como um imperativo categórico. Pela minha parte, admiro-me que os laicos deixem aos crentes o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar».

 

17
Mai24

Preciosa herança


Oliveira

Com a devida vénia, transcrevemos para os leitores do nosso Blog o artigo que segue, do Dr. Pedro Vaz Patto, que explicitamente o partilhou connosco.

(A. G. Pires)

A polémica gerada pelas declarações do presidente da República sobre reparações pelos crimes do colonialismo e da escravatura veio transpor para o nosso país uma polémica mais ampla que é associada à chamada cultura do cancelamento e ao chamado wokismo. Pode dizer-se que este movimento, que partiu dos Estados Unidos, sinteticamente se caracteriza pela rejeição do legado cultural do Ocidente de tradição cristã por ser algo de acentuadamente negativo.

Os críticos dessa proposta e desse movimento têm acentuado, entre outros aspectos, que o passado não deve ser julgado à luz dos valores hoje consensualmente aceites e que os erros e crimes da civilização ocidental não podem ser denunciados unilateralmente, esquecendo os erros e crimes de outras civilizações suas contemporâneas ou que a precederam (também elas marcadas pela escravatura, por exemplo).

Será oportuno recordar, a propósito, como São João Paulo II, de modo profundamente inovador e recorrente, pediu perdão pelos pecados dos “filhos da Igreja” ao longo dos séculos. Disso fala, entre outros, o livro do jornalista italiano Luigi Accatoli Quando o Papa Pede Perdão (tradução portuguesa da Editora Paulinas, Prior Velho, 1997). Esses pedidos culminaram na celebração do Jubileu do ano 2000. Nessa ocasião foi publicado, a pedido desse Papa e com a intervenção de então cardeal Ratzinger, um documento da Comissão Teológica Internacional com o título Memória e Reconciliação- A Igreja e as Culpas do Passado, onde se analisa o sentido desses pedidos e as possíveis objecções a tal atitude.

Na verdade, houve na altura quem temesse que essa atitude representasse uma cedência aos inimigos da Igreja que, de forma preconceituosa e injusta, vêm criticando o seu papel histórico. Também se alegava, então, que os juízos sobre acções do passado devem situá-las no seu contexto, com os condicionalismos socias e culturais próprios desse contexto. Em resposta a estas objecções, esse documento afirma que esses condicionalismos não podem, na verdade, ser ignorados e podem ser encarados como atenuantes, mas tal não implica aceitar uma apologética que tudo desculpa, ou um historicismo que tudo justifica como se não houvesse valores universais e intemporais. Denunciar os erros e culpas do passado é um acto de humildade e coragem que credibiliza a Igreja, contrariando os efeitos de escândalos e contra-testemunhos anti-evangélicos que minam essa credibilidade. São indicados, como exemplo, o uso da violência para pretensa defesa da verdade (a Inquisição), a hostilidade para com os judeus e as responsabilidades pela divisão dos cristãos e pelos males contemporâneos, incluído o do ateísmo. Sempre se reconheceu que a Igreja é santa e carente da purificação dos seus membros, nela coexistem o trigo e o joio, a santidade e o pecado. O reconhecimento das culpas do passado serve um propósito de purificação da memória e de reconciliação.

Na verdade, importa situar no seu contexto acções do passado que eram então prática corrente e hoje já não o são (ou continuam a ser, embora mais claramente condenadas). Mas não pode esquecer-se que já então contrariavam a mensagem cristã que era conhecida de muitos. Ao ler, no livro de Roger Crowley Conquistadores – Como Portugal Criou o Primeiro Império Global (Editorial Presença, Lisboa, 2020), o relato de chacinas e saques sistemáticos dos portugueses que lutavam em prol “da fé e do império”, sabemos que essas práticas eram então comuns, mas não podemos ser indiferentes ao contra-testemunho que representavam na perspectiva da pretendida evangelização.

Importa, porém, salientar também outras facetas do legado civilizacional do cristianismo que suplantam essas facetas negativas e que são ignoradas pela cultura do cancelamento e pelo wokismo.

No referido documento da Comissão Teológica Internacional, também se afirma que o reconhecimento das culpas de filhos da Igreja no passado não representa a «negação da sua história bimilenária claramente rica de méritos nas áreas da caridade, da cultura e da santidade».

Também nos servem de lição, a este respeito, as recorrentes mensagens de São João Paulo II, que exaltava as raízes cristãs da cultura de nações que visitava, desde a sua Polónia natal até ao nosso país sobretudo a partir do testemunho de muitos santos. Realçou, muito especialmente, a importância do reconhecimento das raízes cristãs da cultura europeia, além do mais no Tratado Constitucional da União Europeia. Em Santiago de Compostela, em 1982, afirmou com veemência: «Eu, Bispo de Roma e Pastor da Igreja universal, de Santiago, te lanço, velha Europa, um grito cheio de amor: Volta a encontrar-te. Sê tu mesma. Descobre as tuas origens. Reaviva as tuas raízes. Revive aqueles valores autênticos que tornaram gloriosa a tua história e benéfica a tua presença noutros continentes.

Para descobrir e evidenciar o legado civilizacional de raiz cristã, importa ter em conta algumas realidades.

Por um lado, há valores hoje tão comummente aceites que nos fazem esquecer que tal nem sempre assim sucedeu e, sobretudo, tal não sucedeu nas sociedade e culturas pré-cristãs ou não influenciadas pelo cristianismo. Por outro lado, a semente lançada pela mensagem cristã não germinou, cresceu e deu frutos de imediato. Levou o seu tempo até que dela fossem retiradas todas as suas consequências no plano social e cultural (e certamente ainda não o foram plenamente). O potencial revolucionário do Evangelho foi ofuscado pela mentalidade do tempo (e é bom ter isso presente, também quando se receia contrariar a cultura hoje dominante), ainda influenciada por várias formas de paganismo, mesmo numa “cristandade” sobretudo formal e exterior.

Considerando tudo isso, há que salientar o inegável e incomparável contributo histórico do cristianismo no reconhecimento da dignidade da pessoa, da mulher, da criança, dos mais pobres e vulneráveis, da família e de qualquer trabalho, e dos valores da solidariedade, da justiça social, da paz, da educação, da arte e da ciência.

 

Sobre estes temas, há vários livros cuja leitura recomendo:

. Francesco Agnoli, Indagine sul Cristianesimo- Come si è costruito il meglio della civiltà ( La fontana di Siloe, Turim, 2014);
. Marina Mota, Carismatica Europa – Come i santi hanno rivoluzionato la storia dell´Occidente, (Città Nuova, Roma, 2015);
. Jean Francçois Chemain,  Ces Idées Chrétienmes qui Ont Bouleversé le Monde (Artége, Perpignan 2023);
. Nick Spencer,  The evolution of the West- How christianity has shaped our values (SPCK Londres 2016);
. Rodney Stark, The Triumph of Reason (Random House, Nova Iorque, 2005);
. Tom Holland,  Dominion – The making of the western world (Little Brown, Londres 2019);
. Alvin Schmidt,  How Christianity Changed the World (Zonderman, Grand Rapids 2004);
. Davi Brog; In Defense of Faith – The judeo-christian idea and the struggle for humanity (Encounter Books, Londres-Nova Iorque, 2010).

Somos, pois, e apesar de todos os pecados e crimes cometidos em seu nome, beneficiários de uma preciosa herança.

Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica.

01
Mai24

Um caminho de reconciliação


Oliveira

Com a devida vénia, transcrevemos para os leitores do nosso Blog o artigo que segue, do Dr. Pedro Vaz Patto, que explicitamente o partilhou connosco.

(A. G. Pires)

Foi muito bem acolhida, pela generalidade da chamada “opinião pública”, a notícia de que os bispos portugueses definitiva e claramente deliberaram atribuir compensações financeiras às vítimas de abusos sexuais praticados no contexto da Igreja. Alguns equívocos e hesitações iniciais suscitaram incompreensão e crítica, como se não fosse autêntica e consequente a proclamada solidariedade (onde se incluía um pedido de perdão) para com essas vítimas. Essas dúvidas estão hoje definitivamente superadas.

Importa também sublinhar que se tratou de uma deliberação unânime. Juntando alguma informação correcta com alguma especulação, vinha sendo difundida a ideia de uma profunda divisão da Conferência Episcopal a este respeito. Perspectivava-se, por isso, a possibilidade de cada diocese seguir os seus próprios critérios, que poderiam divergir dos de outras, com as injustiça e desigualdades que tal poderia gerar, para além de uma lamentável imagem de desunidade da Igreja. Também esse perigo está hoje afastado.

Subjacente a esta deliberação, está, precisamente, o reconhecimento de um especial dever de solidariedade para com essas vítimas, que vai para além de uma responsabilidade jurídica. É certo que em várias situações poder-se-ia também analisar a questão nessa óptica, porque a prática do crime ocorreu devido à omissão de deveres de vigilância e punição da parte da hierarquia. Mas nem sempre tal aconteceu, pois há vítimas que só agora denunciaram crimes de que ninguém teve conhecimento na altura. Também para com estas vítimas recai tal dever de solidariedade. Também há que sublinhar, por outro lado, que essa perspectiva jurídica deixaria de fora um grande número de casos (senão mesmo a grande maioria) já cobertos pela prescrição à luz da lei civil e da lei canónica.

Esse dever de solidariedade não deve, porém, ser encarado como algo de menos intenso do que um dever jurídico, que possa conduzir a uma menor protecção das vítimas. Não se trata de um dever geral de solidariedade para com a as vítimas de quaisquer crimes ou de quaisquer outros flagelos. Trata-se de um dever especial para com quem viu traída a confiança que depositou em representantes da Igreja. Perante tais situações, a Igreja não pode reagir com indiferença e insensibilidade. Seria reagir com indiferença e insensibilidade deixar a atribuição de compensações financeiras apenas aos autores dos crimes, que não deixam de ser por elas responsáveis, mas cuja responsabilidade não pode ser concretizada por vários motivos: porque já faleceram, porque não têm recursos financeiros ou porque poderão invocar a prescrição desses crimes (e alguma dessas situações ocorrerá na maior parte dos casos).

As vítimas destes crimes são filhas e filhos da Igreja que não conheceram o seu lado materno. Pelo contrário, a conduta de alguns dos seus indignos representantes, em tudo contrariou essa maternidade da Igreja. Por isso se compreende que muitas vezes essas vítimas dela se tenham afastado (há relatos impressionantes de pessoas que nunca mais quiseram sequer entrar numa igreja, até por ocasião de baptismos e casamentos). Mas a Igreja não pode deixar de as considerar como filhas, tanto quanto considera os sacerdotes ou os leigos praticantes. Nem essas vítimas merecem menos consideração do que outras vítimas que não se afastaram da Igreja porque, apesar de todo o seu sofrimento, souberam reconhecer essa maternidade ofuscada por esses crimes, como chagas que ferem gravemente o corpo de Cristo, o desfiguram, mas não o destroem, porque é válida a promessa de que as forças do Mal, apesar de activas e fortes, não prevalecerão sobre a Igreja (Mt. 16, 18).

Porque a Igreja, como mãe, faz seu o sofrimento dessas vítimas, desses seus filhos e filhas, quer fazer tudo o que está ao alcance para o minorar. É este – a meu ver – o fundamento das aludidas compensações financeiras. Não é esta, certamente, a única ou a principal forma de minorar esse sofrimento. Mais importante é outra, que já vem sendo implementada há algum tempo: a prestação dos necessários serviços de apoio psicológico e psiquiátrico. Mas esta também se insere num processo global de procura de cura e reabilitação.

Penso que a expressão “compensações financeiras” é a mais correcta. Não se trata de reparar o que não pode ser reparado. Nem de indemnizar com o sentido de fazer desaparecer um dano, o que nunca o dinheiro poderá fazer. Mas, de algum modo, compensar, através das oportunidades que recursos financeiros podem conferir, esse dano. Por isso, o montante em causa deverá ser significativo e proporcional à gravidade do dano, não meramente simbólico. Mas também não deve corresponder a uma ilusória pretensão de eliminar esse dano, como se de um “preço” se tratasse, como se fosse possível pagar o que não tem preço.

Oxalá possam estes gestos de atribuição de compensações financeiras ser mais um passo, entre outros, num caminho de justiça, perdão e reconciliação.

Pedro Vaz Patto

24
Abr24

Cristianismo e democracia


Oliveira

Com a devida vénia, transcrevemos para os leitores do nosso Blog o artigo que segue, do Dr. Pedro Vaz Patto publicado, ontem, em 7 MARGENS.

(A. G. Pires)

JacquesMaritain_doc01.jpg

Imagem retirada do documentário ‘Jacques Maritain, a Busca da Verdade”’, produzido pelo Instituto Jacques Maritain em parceria com Grupo Somar para Vencer e Rede Plene Mariae Produções.

 

Em tempo de comemoração dos cinquenta anos da revolução de 25 de abril, penso dever concluir que o maior legado desta é o da consolidação do Estado de Direito Democrático. Uma consolidação que esteve ameaçada nos primeiros tempos, mas que se foi fortalecendo progressivamente. Esta efeméride torna particularmente oportuna a reflexão sobre os fundamentos éticos da democracia.

A propósito dos valores em que deve basear-se a democracia, é particularmente luminoso um pequeno livro do filósofo francês Jacques Maritain, escrito pouco antes do fim da Segunda Guerra Mundial, sobre Cristianismo e Democracia (há uma tradução castelhana das Ediciones Palabra, de 2001). Ele aí afirma que a democracia, ainda que por intermédio de quem disso não tinha plena consciência, «surgiu na história humana como manifestação temporal da inspiração evangélica». Assim foi porque o cristianismo anunciou aos povos a unidade do género humano, a igualdade da natureza de todos as pessoas, filhas do mesmo Deus e  reunidas pelo mesmo Cristo, a dignidade de cada alma criada à imagem e semelhança de Deus, a dignidade do trabalho e dos pobres, a inviolabilidade das consciências, a autoridade como serviço, a lei do amor fraterno que se estende a todos, para além dos diferentes grupos sociais, classes, raças, nações e até aos inimigos.

É verdade que esta ligação entre a mensagem evangélica e a democracia só a partir de meados do século passado foi evidenciada pelo magistério da Igreja Católica. Como em relação a outros aspectos, o aprofundamento desse magistério guia-se sempre por uma cada vez maior fidelidade ao Evangelho, mais do que pela conformidade à mentalidade em cada tempo dominante. Como dizia São João XXIII, não se trata de mudar o Evangelho, mas de o compreender melhor.

Consciente desta realidade e do facto de muitas vezes não terem sido os cristãos, ou os católicos, a lutar pelos ideais democráticos, Jacques Maritain afirma nesse livro que o fermento evangélico trabalha na História de forma oculta e desconhecida. A inspiração evangélica da democracia não deriva do cristianismo como «tesouro de verdades divinas mantidas e propagadas pela Igreja», mas como «energia histórica que trabalha no mundo». Esse trabalho oculto da inspiração evangélica levou, a por esse autor denominada «consciência profana», a compreender a dignidade da pessoa humana (que transcende o Estado «pelo mistério insondável da sua liberdade espiritual e da sua vocação aos bens absolutos»), tal como a dignidade do povo e a dignidade da humanidade que a nós é comum. Foi também o trabalho oculto da inspiração evangélica que levou a «consciência profana» a compreender que a autoridade depende do consentimento do povo e se dirige a uma comunidade de pessoas livres e que é a justiça que alimenta a ordem, sendo a injustiça a pior desordem.  Jacques Maritain lamentava que os cristãos nem sempre tenham sido os arautos desta «consciência profana» que conduziu à democracia, porque se o tivessem sido, ter-se-iam evitado erros e desvios. Esperava que deixasse de ser assim no futuro.

É da mesma época, a dos últimos tempos da Segunda Guerra Mundial (talvez não seja por acaso), o primeiro documento do magistério da Igreja Católica de clara adesão aos princípios do regime democrático. Trata-se da mensagem de Pio XII do Natal de 1944 (acessível em vww.vatican.va). Merece uma leitura atenta. Na linguagem própria da época, acentua bem os fundamentos éticos da democracia, denunciando os possíveis desvios desses fundamentos. É particularmente oportuna hoje, quando tanto se fala dos perigos do populismo (que muitos associam antes à demagogia como forma degenerada de democracia, de acordo com a milenária classificação de Aristóteles), a distinção que nessa mensagem se faz entre povo massa (sendo a verdadeira democracia o governo do povo, não o pretenso governo da massa). Afirma Pio XII nessa mensagem (a tradução é minha):

«Povo e multidão amorfa ou, como costuma dizer-se, “massa” são dois conceitos diferentes. O povo vive e move-se por si mesmo; a massa é em si mesma inerte, e não pode ser movida senão de fora. O povo vive na plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais – no seu lugar e à sua maneira – é uma pessoa consciente das suas responsabilidades e das suas convicções. A massa, pelo contrário, espera um impulso vindo de fora, joguete fácil nas mãos de quem quer que explore os seus instintos e as suas impressões, pronta a seguir, alternadamente, hoje esta, amanhã outra bandeira. Da exuberância da vida de um verdadeiro povo, a vida propaga-se, abundante, rica, no Estado e em todos os seus órgãos, espalhando neles, com um vigor incessantemente renovado, a consciência da sua responsabilidade, o verdadeiro sentido do bem comum. Da força elementar da massa, habilmente manipulada e usada, pode também o Estado servir-se; nas mãos ambiciosas de um só ou de vários que as tendências egoístas tenham artificialmente agrupado, o próprio Estado pode, com o apoio da massa, reduzida a não mais do que uma simples máquina, impor o seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro povo; o interesse comum é desse modo gravemente e por longo tempo atingido e a ferida é com muita frequência dificilmente curável.»

foto-4-JP-II-em-1979.jpg

João Paulo II no seu primeiro discurso na ONU, em 1979: servir o bem comum como propósito da ação política. Foto: Direitos reservados.

A propósito dos fundamentos éticos da democracia, impõe-se salientar outro aspecto. A democracia não se reduz a um conjunto de regras formais que assegurem uma qualquer decisão tomada pela maioria (se assim fosse, não teria, na verdade, sólidos fundamentos éticos). Não se baseia no relativismo. Afirmou São João Paulo II na encíclica Centesimus Annus (n. 46): «Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma recta concepção da pessoa humana. (…) Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo céptico constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idóneos às formas políticas democráticas, e que todos os que estão convencidos que conhecem a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a acção política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra

Fundamento ético da democracia é, antes de mais, o da dignidade da pessoa humana, a que se reporta a recente declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé (aprovada pelo Papa Francisco) Dignitas Infinita. É essa dignidade, comum a qualquer pessoa, que está na base da democracia, porque é nela que assenta o princípio de que a vontade (o voto) de qualquer pessoa, rica ou pobre, culta ou ignorante, vale tanto como o de qualquer outra. Essa dignidade, também perceptível apenas pela razão humana, decorre claramente da visão bíblica do ser humano criado «à imagem e semelhança de Deus» e da visão cristã de um Deus que assume a natureza humana, proclama o amor universal, especialmente para com os mais pobres e vulneráveis, e dá a sua vida pela salvação de cada pessoa, chamada à comunhão com Ele. Como acentua essa declaração, a dignidade humana é “ontológica”, ou seja, é inerente a qualquer ser humano só pelo facto de o ser, independentemente de quaisquer circunstâncias; não depende da idade, das capacidades físicas ou intelectuais ou até das qualidades morais; não admite graus (neste sentido “ontológico”, não no sentido moral, não há pessoas mais dignas do que outras); não se adquire só a partir de determinada fase do desenvolvimento, não se perde com a doença ou qualquer deficiência, inata ou superveniente; e também não se perde com a prática de pecados e de crimes (porque a regeneração moral da pessoa nunca pode ser afastada).  Partindo deste princípio, esse documento enumera, numa perspectiva coerente e global, vários atentados à dignidade humana: o aborto, a pobreza, muitas das guerras, o tráfico de pessoas, a exploração laboral, os abusos sexuais, a maternidade de substituição, a eutanásia, a pena de morte, a hostilidade para com imigrantes, etc.

Não pode algum desses atentados à dignidade humana ser justificado por algum voto parlamentar ou plebiscitário, por muito absoluta que seja a maioria em causa. Quando tal se verifica, é o mais sólido fundamento ético da democracia que é abalado (como sucedeu quando o partido nazi ganhou eleições na Alemanha). Não posso deixar de referir, a este respeito, os atentados graves contra esse fundamento que representam (como negação do direito à vida dos nascituros, seres humanos na fase inicial e de maior vulnerabilidade) as recentes votações do Parlamento francês e do Parlamento Europeu, que levaram à inclusão do pretenso direito ao aborto como direito fundamental na Constituição francesa e à tentativa da inclusão desse direito na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.

Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica. 

17
Abr24

Para além da direita e da esquerda

[sobre a Declaração “Dignitas Infinita”]


Oliveira

Com a devida vénia, transcrevemos para os leitores do nosso Blog o artigo que segue, do Dr. Pedro Vaz Patto publicado anteontem na página da Rádio Renascença.

(A. G. Pires)

Vários são os aspectos da recente declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé (aprovada pelo Papa Francisco), Dignitas Infinita, sobre a dignidade humana, que merecem destaque.
Essa dignidade, também perceptível apenas pela razão humana, decorre claramente da visão bíblica do ser humano criado «à imagem e semelhança de Deus» e da visão cristã de um Deus que assume a natureza humana, proclama o amor universal, especialmente para com os mais pobres e vulneráveis, e dá a sua vida pela salvação de cada pessoa, chamada à comunhão com Ele. Como acentua essa declaração, a dignidade humana é “ontológica”, ou seja, é inerente a qualquer ser humano só pelo facto de o ser, independentemente de quaisquer circunstâncias; não depende da idade, das capacidades físicas ou intelectuais ou até das qualidades morais; não admite graus (neste sentido “ontológico”, não no sentido moral, não há pessoas mais dignas do que outras); não se adquire só a partir de determinada fase do desenvolvimento, não se perde com a doença ou qualquer deficiência, inata ou superveniente; e também não se perde com a prática de pecados e de crimes (porque a regeneração moral da pessoa nunca pode ser afastada). A dignidade humana não é compatível com alguma forma de redução da pessoa a instrumento ou objecto, e já não fim em si mesmo.
Partindo deste princípio, esse documento enumera, numa perspectiva coerente e global, vários atentados à dignidade humana: o aborto, a pobreza, muitas das guerras, o tráfico de pessoas, a exploração laboral, os abusos sexuais, a maternidade de substituição, a eutanásia, a pena de morte, a hostilidade para com migrantes, etc.
Dessa noção da dignidade humana derivam importantes consequências. Porque a dignidade humana não depende da fase de desenvolvimento da pessoa e não admite graus, contra ela atenta gravemente o aborto. Porque a dignidade humana não se perde com a doença ou a deficiência, contra ela atenta gravemente a eutanásia. Porque a dignidade humana não se perde com a prática de crimes, contra ela atenta gravemente a pena de morte. Porque a dignidade humana não é compatível com alguma forma de instrumentalização da pessoa, contra ela atentam gravemente o tráfico de pessoas, o trabalho em condições degradantes, a prostituição e a maternidade de substituição.
Um dos aspectos desta declaração que mais tem sido salientado é o de que ela apresenta a visão da Doutrina Social da Igreja como um conjunto global, completo e coerente de princípios e suas concretizações. A mencionada noção de dignidade humana leva a que ela deva ser defendida, de forma global e coerente, em todas as fases da vida e em todas as circunstâncias. Esta não é, certamente, uma novidade desta declaração; ela apenas recapitula o que decorre em especial dos ensinamentos dos últimos Papas (São João Paulo II, Bento XVI e Francisco) e da coerência de todos esses ensinamentos.
Sublinharam este aspecto, entre outros, o jornalista italiano Andrea Tornielli, um dos responsáveis da comunicação do Vaticano, e o bispo norte-americano Robert Barron, talvez o mais mediático dos bispos, com muitos seguidores no seu país e no mundo inteiro. Afirmou o primeiro que esta declaração «vem superar a dicotomia que existe entre quem se centra exclusivamente na defesa da vida nascente ou moribunda, esquecendo outros atentados, e vice-versa, quem se concentra somente na defesa dos pobres, esquecendo que a vida deve ser defendida desde a concepção até à sua conclusão natural» (in www.vaticannews.va, 8/4/2024). Afirmou o segundo que «a doutrina social católica transcende a divisão esquerda/direita da política ocidental; veja-se como enfatiza temas importantes para a esquerda – migrações, pobreza, oposição à guerra, violência contra a mulher – e uma série de temas importantes para a direita – aborto, eutanásia, ideologia de género» (in www.foxnews.com, 9/4/2024).
Na verdade, há que salientar esta visão completa da Doutrina Social da Igreja, sem a reduzir àquilo a que nos Estados Unidos se designa como 'single issues' (questões isoladas), mas sem esquecer nenhuma dessas questões, sobretudo as mais importantes. Há que defender a vida humana em todas as suas fases, desde a concepção, na infância, na juventude, na idade adulta, na velhice, e até à morte natural. Há que combater todos os atentados contra a dignidade humana, quer quando esse combate corresponde ao “ar do tempo” e à cultura dominante, e assim nos juntamos a um coro de muitas vozes, quer quando esse combate vai “contra a corrente” dessa cultura e somos vozes que «clamam no deserto» (como se tem visto recentemente entre nós a propósito de questões que se pretendem definitivamente canceladas).
Nalgumas questões seremos apontados como “conservadores”, noutras como “progressistas”. Esta visão completa afasta os riscos de parcialidade e de polarização que as divisões entre esquerda e direita acarretam, dentro e fora da Igreja, e que parecem acentuar-se cada vez mais.
Trata-se de uma questão de coerência, mas também de maior eficácia. A defesa da vida e da família depende da formação das consciências, mas em grande medida também de políticas de justiça social ambiciosas. Isolar as questões não é coerente e não é eficaz.
É natural que dentro da Igreja haja pessoas e grupos mais sensíveis a uma ou outra das várias causas de defesa da dignidade humana, mas sem nunca esquecer as outras causas e sem nunca quebrar o diálogo fraterno com outras pessoas e grupos mais sensíveis a essas outras causas.
Penso que este é um dos principais aspectos que a declaração Dignitas Infinita nos vem recordar e que merece atenção.

Dr. Pedro Vaz Patto

Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica.

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub